Páginas

sábado, 20 de agosto de 2011

Ofélia.

Texto que sucede "isso não é amor", escrito em Maio de 2011.






       Ele até sentiu um nó na garganta quando a música começou a tocar. Conhecia aqueles acordes de cor. A batida do piano. Os sussurros da cantora. O baixo bem marcado. Essa música lhe lembrava aquela garota de uns dois anos atrás. O bar estava cheio. Vozes inflamadas gritavam para serem ouvidas entre si. Ele, sentado em um dos balcões do bar, copo de cerveja pela metade, cigarro frouxamente preso aos lábios, cinzeiro cheio de algumas horas de bitucas. 
       “Você vai ficar aí a noite toda?” - Perguntou o barman de braços fortes, ao rapaz sentado.
       “Não, com essa música não.” - Ele largou algumas notas no balcão. Afundou o cigarro no monte de cinzas e dirigiu-se à porta.
       O ar estava frio lá fora. A névoa já encobrira boa parte das ruas do centro. Aquela noite estava excepcionalmente quieta. Poucos carros nas ruas. Pouca gente sob a luz laranja dos postes. Poucos sons para serem ouvidos. Poucas vozes para serem lembradas mais tarde. Ele acendeu um cigarro, as pontas dos dedos descobertos doíam no frio. Seus olhos estavam semicerrados ao vento gelado. A boca entreaberta à espera da fumaça do cigarro. Caminhava em passos largos sem saber para onde estava indo. Via as luzes vermelhas dos carros passarem zunindo e deixarem um traço incandescente de luz nos seus olhos. 
       “O que é que foi que te deixou assim?” - Perguntou-se. Seu orgulho não admitia que ele estivesse vulnerável dessa forma. - “Como é que essa lembrança pode lhe atormentar tanto?” - Abriu o casaco para ajeitar o cachecol. Segurava o cigarro novamente nos lábios. Um pouco de fumaça entrou seus olhos fazendo-os arder e prejudicando ainda mais a visão. O frio que vinha entre o casaco aberto lhe causou arrepios e tremiliques. - “Você costumava me dar arrepios assim. Mas não eram de frio. Era a sua voz que me deixava assim. Sua lingua de cobra, sarcástica, cáustica, que estava lá sempre me dizendo que não, mas também querendo dizer que sim.”
       Seguiu um caminho a esmo. Foi parar em uma grande praça arborizada. A luz dos postes passava por entre as folhas de grandes carvalhos, e projetava-se no chão. Os galhos balançavam em um balé ritmado pelo vento. - “Logo agora você foi se lembrar dela. Ela já deve até ter se esquecido de você. Você nunca foi importante para ela, senão ela não teria feito o que fez, ainda mais agora, que fazem uns dois anos que você não se fala.” - Sua cabeça fervia em pensamentos, lembranças e lamúrias. O cigarro ficara esquecido entre os dedos, acumulando alguns centímetros de cinzas presas à ponta. Mais uma tragada, longa, já no final do cigarro. A fumaça entrou quente pela sua boca. Seus dedos seguravam o resto do cigarro conforme a brasa ia chegando perto do final. Sentiu uma leve dor nos dedos, e por reflexo largou o cigarro. - “Merda, esqueci dele, queimou meus dedos.” - Olhou a ponta vermelha dos dedos e colocou a mão nos bolsos para aquecer as mãos. Caminhou mais alguns passos sobre as folhas que caíram no outono. O chão de folhas mortas partia-se debaixo dos seus pés. Cada passada era uma nova sinfonia sons de folhas se quebrando.
       Com as mãos dentro do casaco, checou o conteúdo dos bolsos. Carteira. Cigarros. Chaves. Celular. Parou de andar por um instante. - “Não. Você não vai ligar pra ela essas horas da noite.” - Pensou. - “Ah, foda-se.” - Pegou o celular e discou os números que um dia já soubera de cor, de tanto que discara. Chamou. Chamou. Chamou. Ninguém atende. Recolocou o celular no bolso e pegou um de seus cigarros. Era doce. Um dos de cravo. - “Você tem que parar de fumar essa merda. Você sabe porque ainda os fuma. É. A vez que vocês se beijaram ela estivera fumando esse tipo de cigarro. Você fuma porque ainda lembra do gosto doce daqueles lábios. Ironia não? Lábios tão doces e uma língua tão ácida sempre lhe dizendo não.” - Pegou o celular de novo. O cigarro pendia frouxamente nos lábios. Discou para ela. Chamou. Chamou. Chamou. Atendeu:
       “Porra, o que você tá me fazendo ligando essa hora da noite?” - Uma voz agressiva lhe falava ao telefone. Ele ouvia vozes ao fundo e também música. 
       “Eu queria lhe agradecer.” - Disse ele, sem pensar.
       “Você me liga essas horas da noite, interrompe a minha bebedeira e me diz que precisa me agradecer de algo? Você é ridículo. Mas vai. Vá em frente, eu sei que amanhã eu nem vou mais me lembrar disso.” - As palavras demonstravam ainda mais irritação.
       “Eu queria lhe agradecer por você ter me dito não. Queria lhe agradecer por você ter resistido a todas as minhas investidas à você. Durante muito tempo eu quis você. Lhe disse todo o tipo de coisas que um apaixonado podia dizer. Fiz da sua vida um inferno apenas esperando um pouco de reciprocidade nesse meu amor irreal. Esperava que você um dia também me respondesse com um ‘Eu te amo’. Mas não. Sempre foi o contrário. Você sempre me dizendo não. E hoje eu vejo que pra você aquilo tudo não passava de um jogo. Você gostava de ter alguém inflando o seu ego constantemente, gostava de saber que tinha alguém lá louco por você. E quanto mais você me negava, mais eu enlouquecia, mais você gostava. Você foi cruel. E hoje eu vejo que eu não seria feliz com alguém cruel assim. Não conseguiria sustentar um relacionamento frio assim.” - Ela ouvia as palavras dele em silêncio. O som das vozes cessara, provavelmente ela estava dentro de um banheiro, ou algo assim, longe das pessoas.
       “Sabe. Eu te vi hoje. Mas preferi não falar com você.” - Disse ela. - “Eu não quero me lembrar mais de você. Você passou pra mim. Fazem dois anos desde aquele beijo. Faz ainda mais tempo que eu sempre disse não para você. Aquele beijo foi fraqueza minha. Eu não queria. Eu não podia.” - 
       “Você foi cruel demais comigo. Primeiro me ergueu aos céus com aquele beijo. Depois me arrastou para o inferno com toda sua negação. E depois disso, durante muito tempo, você sapateou em cima de todos os meus argumentos, de todos os amores que eu derramava por você. Simplesmente desdenhou de tudo que eu sentira por você.” - 
       “Eu sei porque você lembrou de mim. Você ouvi a nossa música no bar. Eu estava lá. Você não me viu. Eu não queria falar com você pois eu conheço esse seu gênio explosivo e causador de problemas. Você transforma um problema em uma enxurrada de lamúrias. Eu vi que você saiu do bar enquanto nossa música tocava. Eu vi o quanto você ficou perturbado. Depois de tanto tempo você ainda continua o mesmo fraco de sempre.” - 
       “Não, você foi durante tanto tempo cruel comigo. E hoje eu já gastei tudo o que eu podia sentir por alguém. Não amo mais ninguém. Não falo de tesão, isso sim, relacionamentos sensualistas, curtos, apenas prazer. Amor não mais. Você me tornou uma rocha. Dura, fria, sem sentimentos. Eu lhe agradeço por isso.” - 
       “Sabe, eu te amo.” - Alguns segundos de silêncio. A respiração fraca na linha do telefone. - “Você insistiu tanto. E eu sempre orgulhosa. Sempre cruel. Quis brincar com você. Quis ver você na lama por minha causa. Mas a verdade é que eu te amo. Você e esse seu dramalhão de Shakespeare.” -
       “Vai se foder. Quem esqueceu de você agora sou eu. Eu também tenho orgulho.” - Desligou o telefone. Jogou a fumaça do cigarro para o alto e saiu caminhando sobre as folhas quebradiças. 
       “Você me tornou cruel. Me tornou uma rocha insensível e ainda vem me falar de amor. Você é ridícula demais.” - Pensou ele enquanto largava o cigarro de cravo. Acendeu um de seus Lucky Strike, colocou-o na boca e largou a carteira de cigarros de cravo em uma lixeira próxima. - “Eu te esqueci. Sem mais cigarros de cravo. Sem mais Shakespeare. Sem mais dramalhão romântico. Agora eu sou apenas uma rocha.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário