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quinta-feira, 31 de maio de 2012

Teatro dos vampiros.

        As feridas vem e vão nas suas mãos. Cada dia uma nova dor se abre. Uma ferida antiga se cura. Uma chave de fenda escorregou e furou a palma da sua mão. Você foi pegar as torradas e queimou seu dedão. Você devia parar de puxar as suas cutículas, seus dedos já estão em carne viva. Mas tudo cura.
        A poeira se acumula pelos cantos.
        Pelos cantos da sua vida.
        Pegue os curativos. Você acabou de abrir mais um buraco nos seus dedos. Está sangrando e pingou no chão.
        Pingou e foi parar lá com a poeira, formando um ponto enegrecido no revestimento de madeira.
        Volte a viver como dez anos atrás.
        Coloque o dedo na boca e chupe as suas feridas. Sente este gosto? É seu sangue.
        Sente essa dor? É você.
        Mas você foi treinado para suportar a dor. Ela nos faz fracos, não faz? Ou quem nos faz fracos somos nós mesmos?
        Você se esquece de contar as horas. Esquece de pagar as contas. Esquece de viver a matemática da rotina. Assim, de inércia você vai vivendo. Simplesmente carregado por onde seus tempo te leva.
        É por causa da dor?
        Mas seu dedo já está curado. Na verdade ele nunca doeu tanto assim.
        É a dor da vida.
        E porque ela dói?
        Cada um tem as feridas nas próprias mãos. Queimou-se pegando as torradas? Não consegue um emprego. Foi a chave de fenda? Ela foi embora. E as cutículas? Você poderia ter feito muito mais coisas.
        De infindáveis dores durante toda a vida nossas mãos ficam cobertas de cicatrizes.
        E o que essas mãos fizeram?
        O que estes calos são capazes de fazer?
        E pra aplacar a dor crie.
        Transforme a dor em algo bom.
        Transforme o sofrimento em arte.
        Transforme-se.
        Está tudo nas suas mãos. E a dor vai passar.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Visceral. . .

. . . uma das minhas palavras favoritas. Em geral as com V e SC são as melhores, Visceral tem os dois. Palavra dita assim na ponta da língua, sibilando entre os dentes e terminando nos lábios.
        E você vive assim, eu sei.
        Sibilando suas palavras e terminando nos lábios tudo o que diz. Essa língua de cobra que destila todos os seus pensamentos. Nós nunca dizemos integralmente o que pensamos. Nós temos medo. E nossas palavras são filtradas por todas as convenções que um dia o homem criou apenas para poder viver pacificamente.
        Tudo por causa das malditas palavras.
        Você tem idéia do que elas causam?
        Nós mentimos e dissimulamos. Enganamos, trapaceamos. Tudo apenas com as nossas palavras.
        Si-bi-lan-do.
        E o que as palavras causam em você?
        Você já chorou por causa de alguma?
        Eu sei que sim.
        Quando você chorava, encolhido debaixo das cobertas, uma palavra, apenas uma única, ressoava dentro de você.
        Você sabe qual.
        Ela sibilava.
        E você achava que essa palavra era a causa de todos os seus problemas.
        Talvez fosse a sua solução.
        Si-bi-lan-do.
        Sibilando dentro de você estava aquela palavra. Destilada pelo tempo, corroída pela dor. Você deixou de pensar nela. Você sabia que se pensasse nela sentiria novamente o salgado das lágrimas no seu rosto.
        O que você esconde?
        Não escondemos nada dos outros. Escondemos de nós mesmos. Mantemos a pose, escolhemos as palavras que vamos dizer. Somos modelados por todos os padrões. Mediamos o que somos. Mais isso não importa. O que importa é o que você esconde de si mesmo. Quem é que são os outros?
        Olhe para você. O que você é?
        Que palavra é essa que você acha que pode resolver todos os seus problemas?
        Olhe para si mesmo e você vai chorar. Chorar pois vai ver que nós somos fracos. Vai ver que todos nós estamos vivendo apenas para algo que todos nós sabemos que vai acontecer. Chorando porque sabe que ninguém vai lembrar de você. E você chora. E guarda a sua palavra.
        O que aconteceria se você a dissesse?
        O que você esconde dos outros?
        Diga para mim, o que você tem para me falar.
        Mas fale para si mesmo.
        Me dê a sua palavra.


        Esconda-se de si mesmo.
Fuja das suas próprias palavras.
Guarde o seu medo.
E me conte depois.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Broken love song

       Este texto foi escrito para uma atividade escoteira. Em meio a uma atividade noturna a tropa sênior encontrou esta carta no meio do caminho . . .





        Escrevo esta carta com os punhos em sangue. Eu ouço Lúcia chamando de algum lugar mas não se onde. Talvez quando a lerem Lúcia já estará há muito tempo perdida. Eu não consegui conter Ezequiel e suas maldades. Tentei suprimi-lo, ignora-lo e até algumas vezes dar o que ele queria. Mas ele só queria destruir.
        Ezequiel gosta de suas maldades. E odeia tudo aquilo que eu amo. Se eu soubesse disso teria ficado longe de Lúcia desde o início.Ezequiel nunca manifestara-se na minha vida até a chegada de Lúcia. Aconteceu logo no primeiro verão em que ela passou aqui na chácara. Entre os meus afazeres diários de caseiro eu via a pequena garota correndo pelos campos, brincando de balanço, e aproveitando a companhia dos animais. Lúcia amava os animais e nós tínhamos, alguns porcos, galinhas e vacas, além dos cães e gatos.
        E foi pelos animais que Ezequiel começou suas maldades. Primeiro eles desapareciam. De um dia pro outro, em algum período da noite eles simplesmente desapareciam. E assim eles foram sumindo um a um. Cada dia eu dava por falta de um dos nossos animais. Mas quisera eu não ter os encontrado. Acha-los foi mais cruel do que perdê-los. Dia após dias os animais que haviam desaparecido reapareciam mortos, despedaçados, suas carcaças espalhadas pelos cantos da chácara.
        Tudo isso porque um dia, enquanto eu trabalhava Lúcia disse-me: "Eu amo todos os animais, sabia? Eles são tão fofinhos." - E eu senti naquele momento a fúria cega de Ezequiel caindo sobre nós. Após o terrível episódio dos animais os pais de Lúcia decidiram leva-la embora, e assim ela só retornou no ano seguinte. E durante todos os meses que ela não esteve na chácara Ezequiel nunca apareceu.
        O ano passou tranquilo, novos animais nasciam cada mês e o estrago que Ezequiel causara fora rapidamente consertado pelo tempo. Mas toda a calmaria foi novamente destruída pela chegada de Lúcia. Agora mais velha, Lúcia retinha um medo contido de mim. Não chegava perto, falava com poucas palavras, nunca olhava-me nos olhos. Talvez ela soubesse que Ezequiel sempre estava por perto.
        Nós temos uma dezena de pinheiros na chácara. Todos eles muito velhos, muito altos e frondosos. E um deles era especialmente querido por Lúcia, o que ficava mais perto de casa. Há alguns meses eu havia pendurado um balanço em um de seus galhos, e o novo brinquedo tornara-se a grande diversão do verão de Lúcia. E quando Ezequiel descobriu isso ele colocou suas maldades em prática. Um dia, ao acordarmos o grande pinheiro estava em chamas. Toda a sua copa pegava fogo como um segundo sol no céu matinal. A tábua da balança fora encontrada em frente a casa principal da chácara. Parcialmente chamuscada, e com uma mensagem escrita em vermelho "Lúcia ♥".
        Ezequiel era mau. Queria sugar tudo aquilo que eu amava e destruir. Eu amava Lúcia. Morei sozinho todos os anos adultos da minha vida, nunca tive esposa e portanto também nunca tive filhos. E Lúcia secretamente era a filha que eu quis ter. Ezequiel sabia disso. E Ezequiel me destruiu por isso. Nestes dois anos que Ezequiel esteve pregando peças eu nunca soube o que ele era. Tudo para mim era um mistério. Ele sabia esconder-se. E agora, eu só sei da existência dele porque ele permitiu-me vê-lo.
        Ezequiel aproveitava-se dos meus momentos de sono para levantar. Assim que eu pregava os olhos era ele que abria-os e levantava. E protegido pelo meu sono ele podia fazer o que queria.
        Na terceira vez que Lúcia veio à chácara ele decidiu dar o golpe derradeiro. Ontem eu descobri quem ele era realmente. Ezequiel era o ódio contido dentro de mim, Ezequiel era as minhas minha mãos descontroladas e a minha consciência doentia. Benjamim era secretamente Ezequiel, e Ezequiel era intimamente Benjamin. Tudo o que ele fez era apenas a minha vontade contida. Ezequiel era apenas ele preso no meu corpo, e nós éramos um só.
        Antes de saber de tudo isso, esperando apenas mais uma noite normal eu deitei para dormir. Mas meu sono foi interrompido, e eu acordei com Lúcia em meus braços. Mas quem controlava-me era Ezequiel, todo o meu corpo agia de acordo com sua vontade. Eu era apenas um espectador dos meus próprios olhos. Eu gritava, debatia-me, tentava mover-me, de algum modo livrar Lúcia do que eu sabia que Ezequiel era capaz de fazer. Mas eu não conseguia, e Ezequiel simplesmente sorria. Aquela visão de Lúcia que ele deu-me era apenas para torturar-me. E quando satisfeito com o meu desespero simplesmente apagou-me no sono.


        Ezequiel tomou Lúcia e escondeu-a em um lugar onde agora eu não sou capaz de achar. Agora, de manhã eu sei que tudo aquilo era real. Eu acordei na minha cama, mas acordei com os pés sujos de barro. Eu sei que Ezequiel não matou Lúcia, ele vai dar-me tempo para procura-la. Ele sabe que eu não vou acha-la, e tudo isso é apenas uma diversão doentia dele.


        Escrevo esta carta com os punhos em sangue. Quem sabe as navalhas não contenham o mal que ele poderá fazer com Lúcia. Se encontrarem-me antes de encontrarem Lúcia deixem-me, eu sou um monstro.
Quem merece viver é Lúcia. Eu estou fadado a pagar pelos crimes que Ezequiel me fez fazer.




Benjamin Ezequiel

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Shadowplay.

- Eu tenho vergonha.
- Vergonha de quê?
- De sentir medo.
- Mas você sente medo? Você não parece ser dos que sente medo.
- É, não pareço. Mas lá no fundo eu sinto. Todo mundo sente.
- Medo de quê?
- Eu não queria sentir medo. Eu pareço fraco sentindo medo.
- Mas poxa, fale do que você sente medo ao menos.
- De ficar sozinho.
- Como assim "ficar sozinho"?
- É, um dia ficar sozinho. Assim, sem ninguém pra no final da semana dividir os cobertores. Sem ter um pé pra esquentar ou um livro pra dividir.
- Mas sempre vão haver livros para serem lidos.
- Mas e quem é que vai ler comigo? Ou melhor, quem é que vai escrever comigo?
- Ah, mas você já tem com quem dividir as suas histórias.
- Mas se eu ficar sozinho?
- E você vai ficar?
- É aí que entra o meu medo.
- Lá vem você com essa história de medo de novo. Pelo menos explique.
- Tá. . . Eu tenho medo que um dia ela se canse de mim.
- Como assim se canse?
- É, se canse. Que hora ou outra as minhas histórias deixem de serem interessantes.
- Cara, olhe as coisas que você escreve. Quando é que elas vão deixar de serem interessantes?
- Mas não são das histórias que eu escrevo que eu tenho medo que ela se canse. Eu tenho medo é que ela se canse da história que eu e ela escrevemos.
- Então é só começarem outra.
- Mas essa não tem volta.
- Pega a caneta e comece a escrever, simples assim.
- A história que eu tô falando não se escreve. Não se conta, nem nada. A história que eu tô falando a gente vive. E se ela cansar dessa história não tem volta.
- É disso que você tem medo?
- É.
- Você ama ela, não ama?
- Sim.
- Até quando?
- Até os poetas ficarem sem rimas.
- Então essa história nunca vai acabar.
- Eu só não quero ficar sozinho.
- Sabe. . . Um dia ainda vão escrever grandes histórias sobre vocês dois.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Braseiro


Como fogo em palha, a centelha da lembrança deu início à um fogaréu.
        "Não sei bem quando foi que eu lembrei. O que eu achava que por muito tempo eu poderia esquecer. A nossa mente é uma coisa engraçada, nos prega algumas peças. Eu achei que podia expurgar todo sentimento que eu podia ter, simplesmente fechar meus olhos e tapar os ouvidos e fazer com que os ventos tempo soprassem as areias da lembrança e desfizessem as dunas da memória."
E o amargo da memória que começou assim, devagarinho foi trazendo a chama. E como todo incêndio, começou apenas com uma faísca.
        "Ela gostava de Van Gogh. Lembro que ela tinha uma reprodução de um quadro dele. Duas grandes botas pintadas em tons de marrom. A imagem pintada era algo banal, mas certamente perturbadora. O que duas botas estavam fazendo ali para serem pintadas? Por que estas botas me incomodavam tanto? Toda vez que eu entrava no quarto dela e via o quadro era como se eu tomasse um choque, e pouco a pouco fosse sendo consumido pela difusão das cores do quadro. A melancolia tomava conta, todos os sentimentos esvaíam-se e ficava apenas o medo. Sim, o medo. Aquele quadro me dava medo. Mas não medo da imagem, e sim medo das coisas que aquele quadro me fazia sentir."
E um dia, após voltar para cara ele tirou capacete, luvas, e jaqueta e jogou-os sobre o sofá. Sentou-se e tirou as botas. Mas ao jogá-las diante de si remeteu-o a imagem daquele quadro. Ali, as botas caídas, sem fazer nada mas dignas de serem notadas. Exatamente feito o quadro.
As lembranças reprimidas de outrora lentamente foram destiladas em ódio. Ódio por ter sido enganado, ódio por ter perdido meu tempo, ódio por ter amado. Ódio por não ter sido amado.
E esse ódio cresceu, era como se tudo o que ele sentisse fosse fumaça que nublasse a sua visão. Como se seus próprios sentimentos fossem ares tóxicos que lhe envenenavam. E seu peito estava cheio das brasas de raiva.
Toda a energia que fora guardada dentro de si estava agora saindo como uma explosão de palavras, lembranças, e lágrimas. Mas ele não se permitia chorar. As lágrimas queimavam rapidamente na superfície escaldante do orgulho.
        "Eu só preciso sair, pegar um ar fresco no rosto pra esquecer tudo mais uma vez."
E assim ele foi, calçou novamente as botas, vestiu a jaqueta, luvas e capacete. Subiu na moto e partiu. Não buscando algum destino, apenas seguindo os ventos, onde o braseiro em seu peito o levasse. Só pararia quando a gasolina acabasse, ou as chamas transformassem em cinza toda a dor.
O cavaleiro conduzia a besta de metal pelas estradas do norte da cidade. Os rugidos retumbavam nas paredes dos cânions, e na escuridão da noite via-se apenas a luz cortando as paredes de pedra.
Ele conduzia a moto cada vez mais rápido.
Mais rápido.
Mais rápido apenas para aplacar a dor, deixando as gotas baterem no seu rosto e confundirem-se com as lágrimas. Mas o vento fazia apenas aumentar as chamas. E o que ele sentia, conforme ele corria aumentava.
        "Não tinha que ter acabado como acabou. O cruel foi que ela jogava comigo. Ora dizia sentir, ora dizia não sentir. E na verdade eu era apenas um joguete. Uma distração até que, segundo as palavras dela, alguém melhor aparecesse. Será que ela sabe por onde eu estive? Será que um dia ele teve noção de tudo o que eu senti? É canalhice demais simplesmente sair assim como ela fez. Desleal. De todas as palavras que eu disse, todas as horas que eu passei destrinchando meu amor para ela eu simplesmente recebi indiferença. Melhor, não era nem indiferença. Ela só me dava a dúvida. Para ela era prazeroso ter alguém que lhe implorasse quaisquer migalhas de carinho. Ela gostava de ser cruel. Amor pra ela não era amar, mas apenas ser amada. E como um fetiche ela aproveitava-se da minha condição de apaixonado doentio apenas para satisfazer seus desejos sádicos. Ela gostava de me ver sofrer. Seu pequeno ego preferia alguém sofrendo por ela do que alguém a amando. Mas um dia ela simplesmente cansou. E assim, como quem chacoalha as migalhas da toalha para fora da janela ela despejou-me da sua vida. E eu fui. E o tempo passou. Eu achei que podia esquecer de tudo. Mas apenas as botas me fizeram lembrar."
Ele ia cada vez mais rápido. Passava velozmente entre os carros, ignorava-os. Estava tomado por fúria, cego feito um morcego guiava-se apenas pelo som das buzinas.
E o ódio que fervilhava dentro dele uma hora ia explodir. Todo o caldeirão de fel amargo que havia dentro dele havia entrado em ebulição. Aquilo precisava escapar. Ele respirava fumaça, seu peito estava cheio de calor. Aquilo tudo ia terminar em chamas.
E assim, ele queimou.

Os que viram a colisão dizem que ele bateu sozinho. Dirigia feito um alucinado na estrada e em uma das curvas simplesmente saiu pela tangente a atingiu direto o paredão de rochas.

Rapidamente consumido pelas chamas. Lentamente consumido pelo ódio.
"Será que ela sabe por onde eu estive?"

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Kerouac?

Desde os tempos imemoriais os homens amavam as mulheres. E como se em um segundo feito de sabe-se-lá-o-que eu encarei toda essa eternidade no fundo das tuas pupilas. Como se o todo o tempo estivesse condensado nas arestas do teu sorriso eu entreguei meu tempo no tique-taque do teu peito. De olhos fechados minhas mãos de areia percorriam o perímetro do teu corpo escorrendo nos segundos da tua ampulheta.

Minha Tristessa que não se permite chorar,
vai chorar até a tristeza passar.

E vem o abraço no escuro, as lágrimas que dizem não me abrace senão eu choro mais. Acho que ora eu, ora você precisamos. Um agarrado sob as asas do outro, protegidos da vida lá de fora. Então deixa eu me agarrar nessas tuas penas, voar, fugir. E olhar nos teus olhos. Porque tudo o que acontece lá fora, fica carregado dentro de nós, e a hora que essas coisas saem nós só temos os nossos próprios abraços para secar as lágrimas.

Deixa eu fugir, vem comigo, me esconde. Me protege e me guarda.