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sábado, 25 de agosto de 2012

Ceremony.

Escrita ao som de Ceremony, tocada pelo Radiohead. Com a melhor impersonação de Ian Curtis já vista.


Quantas vezes você não parou e pensou "O que eu estou fazendo aqui?". Foi exatamente esse o problema. Eu não pensei.

Um.
Dois.
Três passos para trás.
Se eu fosse um índio africano a partir de agora eu seria considerado um homem.
Mas como eu sou um branquelo ocidental as pessoas me chamam de babaca por fazer isto.
Quatro.
Expire.
Cinco.
Um passo.
Seis.
Um passo.
Sete.
Feche os punhos. Inspire.
Oito.
Pule.

E não há deus que vá te ajudar. Não adianta rezar. Chorar. Gritar. Agora já foi. Sem piloto automático você está sob seu próprio comando. Mas a gravidade teimosa lhe insiste em puxar para baixo. Você não vai voar. E a água sob seus pés chega cada vez mais perto. A queda é tão rápida que você não tempo para pensar.

Mas você pensa em tudo.

"Que diabos eu estou fazendo?"

Você não é um índio africano. Não é deus. Tampouco um pássaro. Então você simplesmente cai.
Mas cair não é uma palavra que descreve o que você sente de forma suficiente. Cai é uma palavra muito curta, feito o tempo que você levou para cair. Mas se existisse uma palavra para designar o que você sentiu ela seria uma palavra gigantesca. A queda durou muito tempo para você. A queda foi a partir do momento em que você nasceu, até o o momento que enfim morreu. A queda foi a sua vida toda. A coisa mais longa que já fez, e que é essa sua miserável vida. Apenas afundando, sendo puxado para o inominável abismo sem fim.

E nesse segundo você se sente como um índio africano. Pinta seu rosto com as cores de guerra. Veste o traje cerimonial. Apanha os amuletos, é abençoado pelo Xamã e pula. E este é o momento mais importante da sua vida. Agora você é um homem.

Este é o momento mais importante da sua vida. E é exatamente igual a ela todinha.
"Por que eu estou fazendo isso?"

Pinte-se com as cores que lhe dizem para pintar-se. Esconda seu rosto debaixo de camadas e camadas de mentiras. Vista o traje cerimonial e vá de terno e gravata para o trabalho. Apanhe os amuletos, sua carteira, celular, chave do carro. Seja abençoado pelo Xamã, sua mulher vai lhe desejar um bom trabalho. E pule. Este é o momento mais importante da sua vida. Agora você é um homem.

E durante toda a sua vida, o que você faz é pular de inúmeros penhascos. Apenas para ser um homem. Mas você não tem tempo para pensar. A queda é muito rápida.
E quando você chega lá em baixo há água.

Se você fosse um índio africano assim que você caísse os outros homens iriam lhe resgatar. Fariam você cuspir toda a água e recobrar a consciência. Lhe receberiam com festa, afinal agora você é um deles.

"E agora que eu pulei, o que há lá em baixo?"

Você foi abençoado a partir do momento que nasceu. A partir do momento que pulou. E toda a sua vida simplesmente encaminhava-se para este momento. Depois de pular vai haver água? Vai haver alguém para lhe resgatar?

Assim que você cai seus membros amortecem e você não tem força para remar em busca de ar. Você afunda como uma pedra. Vê a luz tremeluzindo na superfície da água. E a mesma água que lhe dá esperança é a água que te sufoca. Você foi feito para morrer dentro dela. E ela, que tão bonita e agradável foi feita para te matar. Cada um com a parte que lhe cabe.

Assim que você nasce você não tem força. E a morte lhe puxa cada vez mais para perto. Nós nascemos já morrendo. E o nosso tempo diminui cada vez mais. A vida que você vive é a mesma que te mata. Você foi feito para morrer. E a vida para acabar.

Então bata os braços com toda a força. Seja o índio africano. Mas não precise das mãos te puxando nas águas da vida para te salvar. Deixe que a vida te mate, mas pelo menos viva.  E todo o momento em que a água lhe inundar os pulmões reme cada vez mais em busca de ar. Deixe que a água lave a tinta da sua cara. Deixe que seus amuletos afundem na penumbra da lama do fundo do lago. Perca suas roupas enquanto nada, elas só servem para te atrasar. Livre-se de tudo que você carregou consigo. Tenha algum motivo para viver, para respirar. E quando você sair da água, sair da vida, saia limpo. Apenas para poder dizer: Agora eu sou um homem.

Então eu pulei. E não tive tempo algum para pensar. Apenas gritei. E senti a água da lagoa formada pela cachoeira chegando cada vez mais perto. Até que eu caí. E quando eu saí, encharcado, ofegante, dolorido, eu era um homem. Limpo. Uma outra pessoa. Feito os índios africanos.


"Afinal, o que você está fazendo aqui?"

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Leave Before the Lights Come On.

Conclusão da história que começou com Bullet With Butterfly Wings

Você adormeceu achando que ela iria voltar da igreja. Sabendo que ela não havia ido pra rezar você deitou na sua cama e fez as suas orações. Você não rezava desde moleque, talvez por medo, insegurança, ou por saber que ela não ia voltar você juntou as mãos e rezou. Não para Deus. Não para divindade alguma. Mas para si mesmo. Implorando baixinho, murmurando para a sua alma, fiel de mentirinha, crente egoísta. Deitou-se na cama, mas não dormiu.
Ficou apenas olhando a luz da rua que entrava ritmicamente pela janela do seu quarto, acompanhando a curva que a luz dos faróis dos carros faziam no feixe da cortina. E aquilo era sufocante.
Sufocante ver o preto das paredes te encarando. O laranja da luz serpenteando.
Olhando a poesia e a seringa no criado mudo. A poesia tinha borrados de tinta. A seringa tinha pingos de sangue encrustado. Cada um com a mancha que lhe cabe.
E você dorme.

Você não viu ela chegar. Sorte sua que você não viu. Se não você teria visto o estado em que ela se encontrava. Tremendo feito um peru ela vasculhou as suas gavetas. Com todas as forças controlava os pés para não fazer barulho enquanto andava. As feridas na pele haviam voltado. E os feixes de luz da rua a iluminaram quando ela pegou a bíblia.
Ela sabia que você não rezava, por isso havia escondido lá.
Ela pega a última dose que tem, e sai.

Você acorda. Acorda sabendo que ela não vai estar lá. Mas mesmo assim, antes de abrir os olhos você tem esperança de que ela esteja adormecida do seu lado. Você tem esperança de encontrar ela em algum lugar da sua casa. Nem que fosse chapada no chão, ou bêbada no banheiro. Mas ela só lhe deixou o vazio.
Lhe deixou apenas o vazio e a bíblia aberta caída da prateleira da estante.
Se você ao menos rezasse você saberia o que aconteceu.
E você segue a sua vida normalmente, dia após dia sabendo que ela não vai voltar. Você troca os lençóis, os lava até que todo o vestígio do cheiro dela saia. Muda os móveis de lugar e joga fora as garrafas de bebida. Lima os cinzeiros que ela deixou cheios. E se dá por falta da seringa.
Os dias passam. E todos os dias você ainda acha que quando acordar ela vai estar adormecida do teu lado.
Os dias passam e você não vive mais.
Apenas sobrevive.

Se você estivesse acordado você teria visto ela sair. Teria ouvido quando a bíblia caiu no chão. Teria visto quando ela apanhou a seringa e saiu. Teria visto os feixes de luz iluminando a porta fechando devagarinho. Também teria visto quando ela entrou mais uma vez. Quando ela se aproximou da sua cama, abaixou-se e disse: Eu te amo.
E finalmente, teria visto ela sair para não mais voltar.
Ela tomou a última dose de você.

- Ei cara, me arruma um maço de cigarro que eu te pago um boquete. - Diz ela na porta do café para o primeiro que passa.
Afinal, se você sair antes das luzes acenderem você não precisa ver o que fez.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Clique.

Texto escrito para a Corrente Literária, "O que dura pouco para você?".

Dizem que quando você está para morrer você vê a sua vida passando diante dos seus olhos. O problema é que quando eu puxei o gatilho tudo passou rápido de mais.

-Clique-

Nasceu. Dois quilos e pouco. Filho de pai músico, mãe puta. Depois que nasceu o filho a mãe sumiu e nunca mais apareceu. Ficou na mão do pai, coitado. O pai queria que fosse músico também. O filho coitado, nunca tocou uma nota no piano sequer. O pai queria ter casado, não sabia que a mãe do menino era puta. A mãe era puta porque sabia que não prestava pra nada mais, apenas se emprestava para os outros. O pai dizia que ia dar casa, comida e dinheiro toda semana. Ela dizia que já tinha o que precisava. Não quis abortar o filho, já era velha e podia morrer, tinha medo. O pai enfim ficou com a criança. Cresceu forte e bonito o piá, nem parecia que passava fome todo dia, salário de músico não dá pra muita coisa, dizia o pai. Moravam a duas quadras da XV, não que morassem bem, mas a casa era herdada da mãe do pai, e era a única coisa que tinham. Como não tinha quintal pra brincar, tampouco vizinhos da mesma idade, o piá brincava na quinze mesmo. Corria da Osório até a Santos Andrade de pés descalços. E pouco a pouco ele começou a ter a cor da cidade. Os pézinhos sujos conheciam os engraxates da Boca Maldita pelo nome, eram amigos de longa data da mulher-da-cobra, e embora não soubessem o que era Art Noveau eles conheciam bem os portões de ferro dos prédios antigos. Assim, sempre voltando antes das seis, ele voltava da escola, almoçava e ia pra rua. Conhecido dos Lojistas os cumprimentava de vista. Amigo dos mendigos, de tanto jogar bola em frente ao Stuart. Se tinha medo de ficar sozinho? Não. Ele nunca esteve sozinho. Aquela rua era cheia de gente, que embora não soubessem quem ele era, o deixavam seguro. Quantas vezes o guri na sua ignorância não deve ter visto o Trevisan nos bancos da XV e não o reconheceu. Mas infância que é boa, dura pouco e se perde muito rápido. Aos poucos ele foi perdendo o medo da noite, ficando depois das seis. Um dia viu a pedra da Gilda ser roubada, e junto com a pedra foi-se a sua inocência. Ele viu que aquela rua não era o castelo de fantasias dele. Abrindo os olhos ele via a sujeira nos cantos. Volta e meia via os ratos correndo por lá. Mas o pior não eram os ratos, eram as pessoas que viviam com os ratos. Ele não era o único morador daquela rua. Crianças, assim como ele que dormiam debaixo das marquises. Uma vez, cedinho saindo pra escola, ele viu um Rabecão recolhendo um mendigo que havia morrido de frio. Quem diria, que as belas pedras do petit-pavé, que ele já estava tão acostumado a pisar de pés descalços, também podiam matar de frio os desafortunados. O tempo passou. A inocência foi embora. E ele meteu-se com gente que não devia. Crescido à beira da escória, estagnado no meio dos passantes de um lugar que nunca para, a única salvação que ele tinha era meter-se com gente que não devia. Mas a salvação não era salvação do seu futuro, ele já não tinha nenhum mesmo, vindo de onde veio, criado onde foi, não podia-se esperar muito dele. O que ele salvava era o seu tempo. Salvava seus olhos da sujeira que não queria ver. Metendo-se em mais sujeiras ele deixou o passado para trás. Agora viva em outras sarjetas. Acostumou-se com a sujeira pois já fazia parte dela.
Assim, sua infância passou.

-Clique-

Tem coisas que nós deixamos para trás e tentamos esquecê-las. Talvez porque sabemos que nunca mais viveremos outra vez. Talvez por ressentimento por terem ficado para trás. O que fica apenas é o saudosismo dos anos de piá, quando viver era fácil. O que passou, passou. E se pudesse viver de novo viveria exatamente como vivi. O tempo que nós temos para pensar é tão curto quanto o tempo que temos para viver. E o tempo que eu tive pra pensar no que eu vivi foi menor que o tempo em que a bala ficou dentro do tambor da arma. E o que eu pensei, naquele segundo depois de apertar o gatilho, fora no ano em que eu vi os ipês da Osório florescerem. E assim, minha vida se foi, feito os anos, feito as memórias, feito o tempo e feito as flores pisadas na calçada depois da primavera.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

брат - A caixa de ossos.

Você corre pelo pântano. Afunda até os joelhos na lama pestilenta. Respira os gazes tóxicos vindos das águas podres. É tudo tão sem vida. Está tudo morto.
Inclusive eu. E você me deixou assim.
Cada passo faz você afundar-se ainda mais. Cada passo suja as suas roupas ainda mais com a lama. Você sente sede. Você sente fome. E ninguém vai te ajudar.
Tampouco eu. Os mortos não ajudam ninguém.
A terra puxa você para dentro de si. As águas mortas lhe puxam. A lama lhe tira a vida. O ar lhe envenena.
E quem vai lhe dar o último empurrão vai ser eu.
Você sente fome. Corre através das árvores mortas buscando algo para se alimentar. Se você visse um ser vivo sequer você o dilaceraria, avançaria sobre ele feito um leão.
E você me encontra.
Mas eu já estou morto.
O pântano já me levou.
E quem me afogou foi você.
Eu sou agora nada mais que uma caixa de ossos. A carcaça pende apenas os fiapos de carne enegrecida. Você vê o sangue que eu repudiei misturando-se com as piscinas de piche. A pele seca assume a mesma cor da lama na sua pele.
O que corre pelas minhas veias agora é o piche quente. Minha carne agora é feita da lama. E eu respiro fumaça.
E foi você quem me deixou assim.
Você pisou com as botas na minha cabeça e afundou-me no fel.
Egoísmo. Ódio. Você nunca me respeitou. Você quem criou este pântano em mim. Deu-me apenas sujeira.
Mas você ainda sente fome. E meu coração bate dentro da podre caixa de ossos. Coma-o antes que os vermes o comam. Eu sou a sua última chance. Enfie a sua mão e sinta a sua pele queimando em meu sangue. Compartilhe a morte comigo. Apanhe meu coração.
E você mastiga. Sente na sua boca o gosto do betume. Cobre seu rosto com meu sangue negro.
Mas os mortos não ajudam ninguém.
O gosto é amargo. O sangue é alimentado pelos venenos do pântano. E a carne pulsante que você traz nas mãos transforma-se em areia. Pouco a pouco o pântano te sufoca. A sua visão escurece e você lentamente vai caindo nas águas profundas do esquecimento. O pântano lhe consome. Você cai nas piscinas de piche e queima. Queima com o meu sangue.

Eu me levanto e parto.
E o pântano, e você, e o coração transformado em areia ficam no esquecimento, irmão. 

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Carinhoso.

Meu coração, não sei porquê, bate feliz quando te vê.

Com os olhos semi-cerrados à luz do sol ele esperava o ônibus. Olhos que ficavam ainda menores quando semi-cerrados. Olhos que tanto ele sabia que ela adorava. Pequenininhos assim, como ela chamava.
E assobiava um samba. Um samba assim que cantava de longa data.
Com uma poesia nas mãos ele embarcou. Lendo os versos de outros poetas ele pensava nos seus para ela. - "Me alimentando de poesia pra vomitar lirismo depois."
E ele dizia. - "Vão escrever histórias de amor sobre nós dois."
E assim, todos os dias, com poesia, samba, e amor, o domingo chegou.
Querido domingo de todos os santos.
Vem, vem, vem, vem domingo.
Dia dos santos, dia dos trabalhadores, dia que os soldados repousam as armas, dia do descanso.
Dia do amor, pra nós.
E assim, como todo outro eles esperavam o domingo chegar. Para enfim darem as mãos. Para enfim juntos serem felizes. Terem juntos o descanso no dia de todos os santos.
- "Então vem, deita na minha cama. Deixa eu encostar o ouvido na concha entre os teus seios. Pra ouvir o barulho do mar ritmado com o compasso do teu peito."
E eles vão dizer: - "Fica, fica, fica, fica meu amor."

Então serei feliz, bem feliz.