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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O luthier.

        Quando a polícia me perguntou, eu falei que era por amor:

        - "Porque você deixou ele fazer isso com você?" -
        - "Por amor." -
        - "Aquele cara era um doente, ele te sequestrou, ele te mantinha amarrada, te fazia viver sob condições sub-humanas e você fala que amava ele?" -
        - "Eu não amava ele." -
        - "PORRA. Você ama ou não ama ele, qual que é a tua, mulher? Você tá querendo dificultar o nosso trabalho?" -

        Não que o amor fosse importante pra eles. Mas o meu testemunho seria o suficiente para condená-lo. Sem as minhas acusações eles não podiam fazer nada, e ele seria solto. Eles nunca teriam provas das outras pessoas que passaram por ele.

        Eu não fiz por amor.

        Eu fiz por amor à musica.

        - "Eu não fiz por amor, eu fiz pela música." -
        - "Como era o nome dele?" -
        - "Mikahil Kutuzov." -
        - "E o que você fazia pra ele?" -
        - "Eu trabalhava como assistente na luthieria dele. . ." -

        Um dia, eu passava na frente do local. Um senhor na porta fumava um cachimbo. Barba mal feita, rosto completamente enrugado cheio de sardas e pintas. O nariz grande e todo irregular tomava conta da cara inteira. O corpo arcado da idade escondia-se sob uma camisa listrada com os botões superiores abertos. Os cabelos comprido puxados para trás sendo mantidos no lugar por sua própria oleosidade.
        Com uma voz afetada pelo álcool ele me chamou. Eu já havia passado por ele e parei virada de costas. Imóvel, eu não ousava demonstrar reação. Mas aí veio a pergunta.

        - "Você, conhece Tchaikovsky?" -

        Lentamente eu virei-me, impressionada pela estranheza da pergunta.

        - "Lago dos Cisnes, Overture, Marcha Eslava. Ora, é claro." -
        - "Você sabe de onde ele vem?" -

        Aquilo já era estranho demais pra mim.

        No dia seguinte, novamente o hálito alcoólico, o cabelo oleoso e as verrugas.
        E Tchaikovsky.

        - "Ei! Ei garota!" -

        A voz vinha entre as baforadas de fumaça, tinha um som áspero e o sotaque estrangeiro era bem acentuado.

        - "Sabe o Tchaikovsky?" -
        - "Já falei que sim." -
        - "Você já trabalhou algum dia com música?" -
        - "Como assim?" -
        - "Você soa feito Tchaikovsky pra mim, algo no seu jeito de andar. Na cor da sua pele e no movimento dos cabelos. Você tem a mesma austeridade que ele, cada movimento seu pra mim é uma nota. E é justamente esse teu olhar, e quando eu te vi passar, que me fazer te querer aqui, trabalhando comigo."-
        - "Desculpa aí senhor Tchaikovsky, mas eu nem te conheço." -
        - "Me chame de Mikahil, eu venho Votkinsk no leste da Rússia. E eu sou um luthier." -

        E os policiais me bombardeavam de perguntas.

        - "Tá, e daí você simplesmente aceitou trabalhar com o cara sem saber nada sobre fazer violinos?" -
        - "Era pela música." -
        - "E pela música você deixou-o fazer o que ele fez?" -
        - "Ele via a música em todas as coisas." -
        - "Ele era esquizofrênico então"? -
        - "Ele era abençoado. Via música nas vozes, ouvia o murmurar das pessoas em forma de orquestra. Cada gesto tinha um timbre, cada voz era um tom musical." -
        - "E você era Tchaikovsky?" -
        - "Ele via a música nas pessoas." -

        No dia seguinte eu comecei a trabalhar. Anotar recados, fazer pedidos de materiais, receber clientes. Nada que exigisse demasiada capacidade intelectual. Mas tinha apenas uma regra.

        - "Nunca entre no meu atelier, os materiais que eu receber deixe-os na mesa ao lado da porta."-

        E por alguns meses nós seguimos assim. Cordas, madeiras, vernizes, todos postos em cima da pequena mesinha de carvalho esperando pacientemente o grande artesão buscá-los para dar a forma tão desejada do som.

        - "Então quer dizer que você nunca entrou lá dentro?" -
        - "Entrei, claro, quando ele me fez O Convite." -
        - "Que convite?" -
        - "Eu seria a obra prima dele." -

        O trabalho era bom, os clientes eram fáceis de lidar. A rotina burocrática nunca fora problema para mim. As madeiras entravam, os vernizes eram consumidos, todo o trabalho era feito dentro da sala que eu nunca entrara e por fim saía o perfeito instrumento feito sob medida. O instrumento era uma extensão da alma do cliente, cada pincelada na madeira tinha o mesmo brilho dos olhos do músico que empunharia aquele violino. A dobra na madeira era feita sob as curvas do corpo do músico. As cordas eram a voz solidificada em fios de tripa.

        - "Que obra prima é essa?" -
        - "Nós faríamos um instrumento vivo." -
        - "Vivo? COMO ASSIM VIVO?" -
        -  "Um instrumento que captaria a música da pessoa que ele fora feito."-

        Mikahil sabia que eu não aceitaria as condições dele. Sabia que eu ainda não havia encontrado a verdadeira essência da minha música. Eu ainda tinha muito o que aprender com ele.

        - "Então quer dizer que você só entrou no atelier dele quando ele lhe levou desacordada lá para dentro?" -
        - "Ele não queria que eu visse as coisas que haviam dado errado." -
        - "As outras pessoas que ele matou?"-
        - "As pessoas não tinham a música adequada, o som não era forte o suficiente para fazer o instrumento perfeito."-
        - "E o que ele fazia com elas?" -

        Eu demorei muito para aprender com ele.Eu demorei para entender que a dor que eu sentia era o que amplificaria a minha música. E eu gritei, eu forcei as amarras, eu recusei comida, eu resisti à dor. Mas apenas quando eu deixei-me tomar por tudo aquilo que ele era que eu pude compreender o quão importante a música é. A música é o eco da alma de todos nós, são todos os nossos sentimentos transformados em algo físico. A música não é para ser ouvida, é para ser sentida com a alma. Ele ouvia a música das pessoas. E só com a dor eu pude ver o quão grande era a minha.

        - "Por diversas vezes ele tentou transformá-las em cinzas, misturá-las ao verniz e aplicar no instrumento. Outrora ele tentou fazer as cordas. Ou então cozinhou-as em banho lento e demorado para transformar a gordura em cera. Mas ninguém era forte o suficiente, todos eram imperfeitos demais." -
        - "E com você, o que ele fez?" -
        - "Você vê meus braços?" -
        - "O que são esses riscos?" -
        - "Não são riscos. São pautas. Partituras, sinfonias." -
        - "Ele a torturava, lhe cortava, o que ele fazia?" -
        - "Ele escrevia a música em mim, para que eu absorvesse tudo eu pudesse tocar com a alma. A dor me fez aprender a sentir a música com o coração." -

        Nos primeiros dias Mikahil deixava-me amarrada. Dava-me comida, e ensinava-me a música. Ele costumava cantar para mim. Sua voz tinha um timbra grave, rouco e paternal, com cheiro de fumo. Depois, Quando eu comecei a aprender o que eu era, ainda assim eu ficava amarrada, mas podia mover-me pelo estúdio, ajudá-lo no tratamento das madeiras, na construção dos instrumentos.

        - "E quanto tempo você ficou lá?" -
        - "Até a minha família dar por falta de mim." -
        - "E quando eles foram ao atelier, o que ele falou para seus pais?" -
        - "Que eu nunca havia trabalhado lá."-
        - "Mas você não queria sair de lá, ele não te maltratava?" -
        - "Era pela música." -

        Quando ele percebeu que a música em mim já era a suficiente nós começamos a construção da nossa obra prima.

        - "Mas Senhor, não vai doer?" -
        - "Quando você tiver a música você não vai precisar do seio. A música já está no seu coração." -
        - "E o que você vai fazer?" -
        - "Anestesiá-la, não vai doer." -
        - "E com a minha carne?" -
        - "A beleza do seu corpo irá tornar-se a cera que dará brilho ao nosso instrumento." -

        Ele tinha as mãos delicadas, dedos hábeis e movimentos precisos. Com um bisturi ele removeu todo o seio e transformou a gordura e a pele em cera. Com experiência fechou os pontos e estancou o sangue. Eu nem pude sentir dor, tamanho era o amor.

        - "Quer dizer que ele te torturava para fazer um violino?" -
        - "Ele queria a minha essência." -

        Outras partes minhas viraram cera. Os vernizes com cinza diluída foram tirados dos meus dedos.

        - "Sabe, os ossos queimam bem. Nós teremos um bom material." -

        Na delegacia queriam convencer-me de que ele era louco.

        - "Foi ele que mutilou você? Faltam-lhe dedos, seu seio, nacos de carne e músculo pelo corpo inteiro. Você não viu que por causa dele você está nessa cadeira de rodas? Ele te destruiu, ele acabou com a sua vida. Você já foi procurar um médico, já sabe se essas cirurgias não causaram infecção alguma em você?" -
     
        Nós tivemos uma prole. Eu sei que ele amava-me pela minha música. Tudo o que ele tirava-me não fazia importância, ele não ligava para a minha aparência. E durante muitas noites nós nos amamos. Ele cobria-me de beijos. Nós deitávamos juntos todas as noites na esperança de que a nossa cria iria

        - "O feto. O feto é importantíssimo para a nossa música. Com os unguentos eu hidratarei a madeira e deixarei-a macia para o trabalho." -

        E assim nós ficamos até o dia da concepção, da dor, e do ser mal-formado caído prematuramente no chão sob as minhas pernas.

        - "Rápido! Rápido! Não podemos perder tempo. Pegue as panelas." -

        Durante todos os meses do meu aprendizado ele não deixava-me tocar num fio sequer do meu cabelo. Ele crescia desordenadamente. Nada mais de produtos, tintas, ou químicas.

        - "Ele vai ficar liso com o tempo, e com os fios negros nós faremos um arco que suportará todos os golpes do músico." -

        Nós prosseguíamos com os unguentos todos os dias, a lavagem da madeira, as dobras e os entalhes. Até a conclusão da nossa obra prima. Mas daí vocês chegaram.

        - "Minha querida, eis que aqui nós temos o nosso instrumento perfeito. O Violino feito com a música da sua alma e criado com a carne do seu corpo. Tu, que encarnou a música para dar vida a este som." -
        - "Toquemos à nos Senhor!" -

        Cães, as batidas na porta, sirenes.

        - "Polícia! Abra já essa porta ou arrombaremos!" -

        Algum vizinho reclamou do cheiro que vinha da casa. Diziam havia alguma coisa morta lá dentro. A polícia ao investigar o lixo encontrou os restos de carne que nós não utilizamos.
        Ao entrar Mikahil apanhou o bisturi e colocou-o no meu pescoço.

        - "Se vocês se mexerem eu mato ela!" -

        O tiro foi certeiro. Atingiu o ombro dele e não tocou em sequer um milímetro de mim.
        Nós fomos levados ao hospital, depois à delegacia. Haviam encontrado os experimentos errados e encontrado o violino perfeito que nunca fora tocado.

        - "Os nossos médicos acreditam que durante todo esse tempo de cárcere você desenvolveu sérios graus de Síndrome de Estocolmo. Por favor, aceite vê-los novamente, nós podemos te ajudar e podemos colocar esse monstro na cadeia. O que ele fez com você não é humano." -
        - "Eu só quero o meu violino." -
        - "Nós sabemos do que ele foi feito. Ele foi incinerado." -
        - "NÃO! NÃO! NÃO! AQUELE INSTRUMENTO ERA A MINHA VIDA! ERA A MINHA ALMA. TODA A MINHA MÚSICA ESTAVA NELE!" -
        - "Alguém me ajude a dar um jeito nela, por favor!." -
        - "Aquele instrumento era perfeito, ele carregava música interior que há dentro de mim! Por favor NÃO!!" -
        - " Doutor, venha aqui!"-
        - " Pronto, pronto, esse remedinho vai te acalmar." -
        - "Agora que nós temos tudo o que ela falou, ele vai preso de fato." -
        - " Capitão Alexander!" -
        - " O que foi, porque você está todo esbaforido assim?" -
        - " O luthier." -
        - " Que foi?" -
        - " Se enforcou dentro da cela. Ele tinha uma corda de violino no bolso, amarrou-a nas grades e suicidou-se." -



A música é feita de todos nós. É o eco da alma. É a dor, é a palavra, é a felicidade, todos os nossos sentimentos transformados em algo físico e palpável. 
A música está dentro de todos nós.









segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

De todas as coisas que um dia eu quis dizer.

        Um texto tímido, que não é pra ter sentido, não é uma história, não é algo excepcional. É como se fosse apenas para colocar os pensamentos em ordem, e fazer tudo voltar ao normal, como você diz.



Eu queria um cigarro, companhia, ou alguma coisa pra beber.


        É como se ela me sugasse. Fizesse-me esvair-me toda a criatividade e deixasse apenas um monte de cinzas dentro do meu peito. Como quando eu tento escrever e sequer uma frase sai das minhas mãos. Esse é o texto paradoxal sobre não conseguir escrever. Pra escrever, eu preciso ler. Mas eu tenho uma dezena de livros-não-lidos na minha estante. Falta concentração. Falta papel e caneta. Faltam páginas. Falta eu.

        Justamente. Eu estou faltando dentro de mim mesmo. A minha alma foi sufocada por tudo o que aconteceu. E agora, a cada palavra que eu tento escrever eu tiro um punhado de terra de cima de mim mesmo. Vagarosamente a criatividade emerge da cova de cinzas e quebra a casca da lembrança que lhe impede de crescer. 
        Se fosse por falta de amor eu não sofreria. O problema é que há amor demais. Se houvesse orgulho, quem sofreria seria você. O problema é que tem mais amor do que orgulho.  Eu sei que eu posso fazer você sofrer, mas cada outro eu meu diz-me para não fazer isso. O amor está sobre todos os outros eus. O amor impede a vingança.
        Embora você nunca imaginasse, mas o Tyler também pode sofrer.
        E cada volta do disco é uma lembrança. Cada verso é um momento. Do gosto pungente da vodka gelada, do cheiro da pele, das tuas palavras. De todas as coisas que um dia eu quis te dizer.
        E de tantas coisas eu sei que eu posso perdoar,


mas nunca esquecer.





quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Lobos.


        Até hoje eu tenho pesadelos todas as noites com lobos.


        Não. A morte não vem à cavalo.
        A morte tem pelagem cinza. Tem olhos azuis. Tem dentes pontiagudos.
        A morte me persegue. Eu fujo. Eles são três.
        Eram três.
        A morte é a bala do meu fuzil. A morte é a lâmina da minha faca.
        Por mais que eu corra eu sei que eles vão me alcançar. Meus pulmões queimam. Meus músculos queimam. Eu corro por entre as árvores, elas passam pela minha visão como raios. Um deles vem pela direita. Outro por trás. 


        -"Porque é que você vai caçar essas horas da manhã, amor?"- 
        -"Tem um alce."-
        -"E?"- 
        -"Eu estou na pista dele fazem alguns dias. Ele tem rondado a floresta."- 
        Eu apanhei o rifle, as botas, o boné, as barras de cereal e saí. Quando eu já havia ultrapassado a balaustrada da varanda ela disse:
        -"E sua faca? E seus cigarros?"-
        -"É verdade. Bem lembrado."-
        Saí do casebre em que passávamos as férias. Caça para mim era um passatempo. Eu não mataria o alce para me alimentar. Era simplesmente a sensação de poder que eu tinha. Passava horas seguindo as pistas. E ao avistar a presa eu tinha todo o poder da vida ou da morte nas mãos. O dedo no gatilho era a linha tênue entre a vida e a morte do alce. Aquele alce estaria à minha mercê. Eu era o deus daquele animal. Eu tinha completamente o poder sobre a vida. Aquele alce era meu.


        O primeiro, eu derrubei com um tiro.


        O sol estava nascendo atrás das montanhas. O inverno acabara de terminar e todas as árvores estavam desfolhadas. As plantas baixas da tundra estavam apenas renascendo. Ainda havia um pouco de neve nos galhos das árvores. 
        Eu caminhei durante algumas horas. Seguindo as pegadas. Indo e vindo por pistas falsas. Caminhava tranquilamente com o rifle nas costas e um cigarro na mão. Apenas à espera da presa.


        Foi aí que eu o vi.


        Ele estava a uns 200 metros de distância e vindo na minha direção. Eu ajoelhei-me, fiz a mira, e esperei.        
        Ele, apenas com a sua vida de alce. Fazendo coisas de alce. Comendo comida de alce. Na minha mira. Quando ele aproximou-se mais, a pequena cruz da mira já estava completamente centralizada entre seus chifres. Eu cuspi o cigarro, tranquei a respiração, e atirei.
        Ele caiu. Após o estampido da arma ele caiu lentamente feito um tronco de árvore enquanto grunhia sofridamente.


        Foi aí que eu vi.


        Entre o lobo e eu, estava o alce. 
        Aquele alce era meu. Eu vinha seguindo-o a dias.
        O lobo ia alimentar-se daquele alce. Aquele lobo esperou semanas para a deixa certa para atacar o alce. Aquele alce era do lobo. 
        E ele me viu. Com os olhos vidrados em mim, ele rosnava com os dentes à mostra. Avançou primeiro em passos lentos, pata ante pata. Mas o ritmo foi aumentando. Ele corria. E saltou por cima do corpo do alce em minha direção.
        Eu tinha poucos segundos. Com os movimentos precisos do ferrolho, outrora muito bem treinados, eu engatilhei novamente o fuzil. E atirei.
        Novamente, mais uma lamúria suplicante pela vida. O tiro pegou-o em cheio no peito. Com o tiro ele parou de correr e caiu ao chão, ainda arrastando-se um pouco. O sangue manchava a pelagem cinza. A respiração saia em vapor de suas mandíbulas semi-abertas.


        Foi aí que eu os vi.


        Eu ouvi um latido. Desesperado eu virei-me. Ainda tinham mais dois deles, um pela esquerda, um pela direita. Eu estava cercado.. Estavam cercando-me o tempo todo. Não sei a quanto tempo eles me seguiam. A presa não era o alce.


        Eu era a presa.


        E eu corri. Eu sabia que eu tinha cerca de 800 metros até uma posição de tiro favorável. Eu subiria em um rochedo próximo. Recarregaria o fuzil, e atiraria. Recarregaria de novo e mataria o terceiro. Mas as coisas não eram fáceis assim. Esses 800 metros eram muito mais que 800 metros. Eu corria. Corria enquanto ouvia os latidos. Eu passava por entre as árvores e pulava as raízes. Eles estavam próximos. 
        Ao virar-me para olhar para trás eu vi a boca aberta avançando contra mim. O rugido animal de fome, de bestialidade declarava a minha morte. Ele pulou sobre mim, mas eu ainda pude acertá-lo com um golpe da parte traseira do rifle. O segundo lobo caiu. Eu sabia que não havia o matado. Ele caiu e ainda respirava, mas estava inerte, paralisado com o golpe direto na cabeça.
        Ainda havia mais um. E eu continuei correndo.


        E ele vinha feroz atrás de mim. A sua natureza de predador havia treinado-o para isso. Aquela era a vida do animal. A única coisa que ele fazia era caçar.
        Ao alcançar o rochedo, o lobo também me alcançou. Enquanto eu subia nas rochas, ele pulou e mordeu a parte traseira da minha coxa.  Como um choque elétrico no meu corpo, a dor tomou conta. Todo o meu corpo amoleceu-se. Eu escorreguei, perdi as forças, e deslizei descida abaixo. Enquanto eu rolava pela encosta, o lobo vinha junto. 
        Ao chegar novamente ao pé do morro eu vi que meu rifle havia rolado para longe e o lobo estava novamente aproximando-se de mim. A minha perda doía. O sangue empapava as minhas calças, e pelas rochas que eu rolei havia um rastro de sangue.
        O lobo vinha lentamente na minha direção. Olhando-me. Precipitando cada reação.


        Eu ainda tinha a minha faca.


        E ele avançou sobre mim feito o seu parceiro inconsciente. Assumiu uma posição de ataque, que só este tipo de animais faz. Olhava fixamente para mim. Esticou as patas dianteiras, preparou o pulo, com um movimento levou o corpo para trás. 


        E pulou.


        Mas eu já havia apanhado a faca.


        E o lobo pulou diretamente sobre mim. Diretamente sobre o meu corpo. Diretamente sobre a faca. O sangue quente jorrou do peito do lobo e inundou as minhas vestes. Ele caiu sobre mim. A pelagem espessa estava inundada de sangue. O corpo pesado do animal estava sobre meu peito. Eu tive dificuldade de tirá-lo de cima de mim.


        Com a perna ferida, eu demorei um bom tempo para subir o rochedo. O rochedo era na encosta de um rio. Lá de cima, eu poderia gritar por socorro e esperar alguém. Lá de cima me veriam. Eu não tinha condições de andar até em casa.
        Lá de cima do rochedo eu pude ver o panorama. O lobo morto no chão com a faca cravada no peito. O rio que passava pelas minhas costas, feroz como a fúria dos lobos. O degelo das montanhas aumentara muito a força da correnteza. Pude ver o alce, escondido entre as folhagens baixas. Pude ver o primeiro lobo, ao lado do alce.


        Onde estava segundo lobo?
        Eu procurei desesperado o lobo desmaiado até onde meu olhar podia alcançar. 

        Ele estava mais perto do que eu pensava. Ele subia o morro atrás de mim. Uma coronhada apenas não fora suficiente para derrubá-lo. 
        Eu me aproximava da beirada do rochedo. Eu estava cercado. Meu rifle estava lá embaixo, minha faca também. Eu não tinha mais o que fazer. E a minha perna queimava de dor, mesmo que eu tivesse algum lugar para correr, eu não conseguiria.
       
        Ao chegar no topo o lobo parou. Sua respiração criava vapor no frio. Seus olhos de puro ódio encaravam-me. Eu podia sentir o cheiro da pele do lobo. Eu podia sentir a ferocidade que corria pela suas veias. Ele sentia o medo em mim.
        Eu não sei como aconteceu. Talvez eu estivesse muito perto da borda do rochedo quando ele pulou sobre mim e me fez cair. Talvez eu pisei em falso enquanto olhava para trás. Talvez eu tenha pulado na água por não ter para onde correr. A queda era alta. Eu bati a cabeça em alguma rocha quando caí.

        -"Julien! Julien! Cadê você? Você pode me ouvir? Onde é que você está?"- 
        Eu ouvia apitos, via feixes de lanterna. Ouvia gritos do meu nome.
        Talvez eu tenha acordado por causa da dor, talvez com os gritos dos que me procuravam. Meu sangue diluia-se na água. Eu estava deitado na beirada de uma parte calma do rio quando acordei. A perna doía muito, se eu demorasse a tratar a mordida aquele membro seria um membro morto.

        Quantas horas eu fiquei ali?

        O vento frio gelava todo o meu corpo, o que acentuava a dor. O crepúsculo da manhã começava a aparecer no horizonte. O sol magenta coloria toda a tundra.

        Quando me encontraram, eu perguntei: 
        -"E o alce?"-
        -"Que alce?"-
        -"Eu matei um alce."- 
        -"Você está machucado, agente precisa te levar para um hospital."- 
        -"Eu cacei aquele alce, se ninguém cuidar da carne logo logo ela vai apodrecer."- 
        -"Deixa que os lobos da floresta o comam."- 
        -"Aquela presa era minha."-