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domingo, 25 de setembro de 2011

O último tango da noite - III

Parte três do texto escrito em parceria de Verônica Hiller, do girl sets fire.








       Então eu deixei a porta se fechar. A claridade daquele apartamento ainda exalava de mim. Desci as escadas correndo, acreditando que a rapidez com que eu fugia me convenceria de que assim era o certo a se fazer.
       Eu estava com falta de ar. Mas mesmo assim acendi um cigarro. Senti a garganta arranhar na primeira tragada. Eu não sei se a falta de ar é por ter descido as escadas rápido demais, não sei se é por causa dos cigarros, ter rabiscado coisas na parede, pegado todas as minhas coisas e sumido de lá feito um ladrão. Não. Só por causa dos cigarros mesmo. Mesmo que ela tenha sugado todo o ar que até o meu eu mais saudável teria na noite passada. Mas eu não iria me deixar acreditar nisso. Eu fiz o que fiz por que era necessário. Eu não quis tudo aquilo. Ou, pensando melhor, talvez eu até fosse um ladrão. Ela provavelmente concordaria. Ladrão de paz. Tinha lá uma frase, não tinha ?! Qualquer coisa sobre covardia e amor.
        E agora cá estou eu. Com uma mala de roupas nas costas, um cigarro na mão, e os arranhões na pele. Merda, a minha blusa está com o cheiro dela. Quem sabe logo logo esse cheiro não saia de mim e eu volte ao velho cheiro dos cigarros. Eu fui embora feito um covarde, de fato. Eu ainda tenho o vermelho nas minhas mãos, o teu vermelho nos meus lábios. Eu ainda tenho as tuas risadas fazendo cócegas nos meus ouvidos, teu olhar queimando a minha carne. Sem esquecer dos gemidos. O Carlos Gardel ecoando pelas paredes enquanto competíamos entre qualquer frase sarcástica e os goles da tua cachaça. E depois o vinho. E depois os beijos. E depois teu corpo.
        O som da tua voz que começou apenas com um 'me dá um cigarro', no bar. Terminou em gritos. A canção alta daquele lugar tornou-se o tango do toca discos. O toque leve das tuas mãos no meu ombro quando me cumprimentou, algumas conversas, e no fim acabamos na sua casa. Eu senti a tua pele na minha, a lascívia que estivera dormente no começo da noite tornara-se, depois, o feu amargo que preenchera nossos corpos. As palavras viscosas que nós trocávamos, falávamos de coisas banais, falávamos da alma, falávamos de sexo e de desejo. E foi assim que nós acabamos, submersos até o pescoço no pântano do nosso tesão. Estamos enlameados da nossa sujeira, recobertos pela camada escura que nos cobriu ontem à noite. Os beijos, os arranhões, os gritos. E agora tudo isso cheira à coisas mortas para mim. Eu estou completamente sujo de lama. Toda essa tua lama. Morta. Que já não tem volta: era o fim quando eu bati tua porta que guardava todo aquele vazio luminoso. Todo o teu vazio luminoso que acariciou as arestas mais moribundas da minha alma. E agora o amargo da ressaca, a fumaça opaca, a falta do teu calor em mim. A rua parada, vazia, as calçadas molhadas, e eu vagando feito um idiota, decidido a te dar as costas mas não conseguindo nem te tirar da cabeça.
       As lembranças de ontem não me deixam esquecer você. Lembranças estas corroídas pelo álcool, flashes de ontem ainda me vêm à mente. Tu me disse que era loucura sairmos assim. Eu te disse que eu precisava. Nós quebramos as taças de tão inebriados que estávamos. E nos beijamos como se nossas vidas dependessem daquilo. Teus lábios encarnados na minha pele. As mordidas que mesclavam dor e prazer. Eu te quis fazer mulher naquela noite. E na pequena nuvem de pelos negros do teu sexo eu fiz meu ninho. Cobri de beijos a tua casa. Senti você esquentando com os meus carinhos e derretendo-se na minha boca. Vi gradativamente teus gemidos transformarem-se em gritos, tua vergonha transformar-se em desejo, tua sanidade transformar-se em lascívia. Ah! Eu tive teu corpo a noite inteira. Desfrutei-o como se lá fosse a minha morada. Te carreguei nas minhas mãos como quem conduz um par pela dança. E nós com o corpo melado de suor, os beijos salgados que escorregavam pela pele, perdemo-nos dentro de nós. E com todas as nossas forças completamente drenadas, os músculos doídos, a pele marcada, nós deitamos. O colosso de pedra jazia inerte com a ninfa de cabelos negros enredada em seus braços. E nós dormimos. Mas eu, covarde, fugi.
E eu, agora, só conseguia rir. Toda a desgraça escorrendo da minha gargalhada. Meu deus, eu a tive inteira nas mãos. Noite passada ela foi minha. E eu só simplesmente fugi. Com medo de toda a grandiosidade que éramos nós dois juntos. Eu fui medroso, eu fui fraco. Eu não quis me envolver, não quis me entregar, e por isso eu fugi.

       Fugindo, lembrando. E toda a porra da falta de ar. Talvez fosse só ressaca mesmo. Talvez um banho quente e tudo isso passe. Pra expulsar toda a tua presença que ainda gritava em mim. Pra apagar todo o teu cheiro da minha vida e só ficar a fumaça dos meus cigarros. Só dos meus cigarros. 

sábado, 24 de setembro de 2011

das coisas feitas de amor

       A atmosfera lúgubre do lugar envolvia todos os presentes como uma névoa. O ar tornara-se pesado de tanta lamentação. Algumas velas, cuja chama não era necessária, derretiam calmamente no próprio ritmo sobre castiçais de bronze, o sol poente entrava diretamente pela porta da frente, trazia uma iluminação laranja ao piso de madeira e um pouco de calor à pele das pessoas. Sentadas nas cadeiras haviam algumas senhoras, pessoas entravam, saíam, trocavam poucas palavras, e despediam-se. Os lenços já encharcados de lágrimas,  e as vidas cheias de desgraças.
       O negro das roupas engolia todas as cores do lugar, sapatos de couro ressoavam à cada passo no assoalho de madeira escura. A garota, no centro, era a única manifestação de cor do lugar. As pequenas profusões de cores do arco de flores sobre sua cabeça contrastavam com o cabelo negro. O vestido branco de várias camadas lhe descia até os pés descalços, e sobre todo o corpo uma mortalha de linho branco lhe cobria e deixava apenas a cabeça para fora. Sob a mortalha via-se o contorno dos nós dos dedos sobre a barriga e alguns anéis dourados.  
       Debaixo do burburinho de sussurros uma senhora comentou com o rapaz ao lado - "Sabe, vendo ela assim, tão calma, ela parece um anjo dormindo." - A garota estava de olhos fechados, os cílios compridos enredavam-se uns nos outros. A boca levemente aberta deixava uma pequena parcela dos dentes à mostra atrás dos lábios pintados de vermelhos. As arestas protuberantes da face da garota estavam começando a tornarem-se levemente pálidas. Novamente, a senhora falou em tom baixo. - "Você era o que dela?" - O rapaz olhou para a senhora, com os olhos vermelhos que já tanto chorara, e disse baixo, com pouca força para falar. - "Namorado." - E a senhora perguntou, mas não obteve resposta. - "Você deve estar sentindo bastante falta dela, não é?"
       Ele levantou-se, prostrou-se de pé diante do caixão, e beijou a garota na testa. Ao encostar os lábios sentiu o gelado da pele e o cheiro das flores. Alguns presentes notaram a movimentação do rapaz, mas pouco importaram-se, cada um estava absorto nas suas próprias mágoas. Com um movimento de braço o rapaz retirou a mortalha de linho que cobria a garota e segurou suas mãos. Suas lágrimas já haviam se esgotado de tanto que outrora ele chorara. Ele aproximou seu rosto da garota, embora sabendo que não seria mais ouvido, ainda assim disse. - "Eu não tenho mais lágrima alguma pra chorar, todo meu sofrimento as secou, e agora só me resta despedir-me de ti. Mas isso não significa que eu vou te esquecer."
       Dentre os anéis, um em formato de cobra, no polegar, um com uma pequena pérola, no dedo médio, e por fim, no anelar, um dourado de filigranas prateadas, ele retirou o terceiro, o dourado, e colocou-o em seu próprio dedo. Recolocou a mortalha no lugar, e ajeitou a coroa de flores. - "Você sempre foi linda, e sempre será, pois eu nunca esquecerei teu rosto, teus lábios vermelhos sempre estarão estampados na minha memória."
       A senhora observava todos os movimentos do rapaz atentamente, e falou para ele. - "Menino, senta aqui, vem, conversa comigo." - Ele olhou para a senhora, e sorriu. Sentou-se novamente ao lado dela.
A senhora aparentava estar no fim da vida, a pele branca sustentava as rugas, e a alvura do rosto escondia olhos negros e lívidos. E ela falou ao rapaz. - "Sabe, todos que estão aqui amam muito ela." - O rapaz endireitou-se na cadeira e respondeu. - "Mas todos que estão aqui a amam por serem familiares, foram obrigados a amá-la por terem conhecido-a desde o começo da sua vida, e a amam pois inevitavelmente ela fazia parte da vida de todas estas pessoas." - Ele tomou fôlego, a garganta arranhava conforme ele falava as palavras com o som fraco, estava rouco. Pigarreou e continuou. - "Já eu não, eu escolhi amá-la. Eu abri as portas da minha vida e ela tomou conta da minha casa."- Ele rodava o anel de filigrana no dedo. - "Ela foi embora, não se despediu."
       A senhora olhava para o rapaz, atenta, ouvido cada palavra que ele dizia. O burburinho de palavras camuflava-os, as coisas que ele falava eram inaudíveis à todos se não à senhora. - "Eu era capitão do nosso barco, fazia-nos navegar pelo mar da vida, conduzia-nos através das tempestades. Mas daí ela decidiu simplesmente se jogar na água, desistir da viagem e deixar a água tomar conta de seus pulmões. . ." - A fala dele foi interrompida pela tosse seca da senhora, que disse. - "Continue, continue, eu estou ouvindo."
Ele continuou.
       As mãos juntas, a cabeça baixa, não olhava para a senhora enquanto falava. - "Nós enlaçamos as nossas vidas e criamos o nosso reinado de felicidade sob o nosso teto, éramos rei e rainha dos nossos caprichos. Das nossas paredes nós fizemos testemunhas do nosso amor, os espectadores monolíticos da epopeia que era a nossa paixão. Éramos performáticos, sensualistas e exagerados. Declarações de amor eterno em voz alta, poesias rabiscadas nas paredes, beijos e sorrisos em demasia. Escrevemos um no outro o primeiro capítulo de nossas vidas juntos. E envoltos na coberta macia que eram os nossos carinhos nós nos escondíamos da aspereza da vida lá fora. Mas ela se foi. E agora ela me deixou aqui pra terminar essa história sozinho." -  Suas mãos estavam suadas. Os dedos contraíam-se, relaxavam-se, e as lágrimas secas de outrora, já voltavam. Os olhos começavam a ficar vermelhos, a visão começara a ficar turva.
       - "Sabe, ela gostaria de ouvir tudo isso." - Disse a senhora.
       - "Quisera eu que ela estivesse aqui para ouvir isto." - Respondeu ele.
       - "E ela está." - Disse a senhora, sem hesitar.
       O rapaz olhou para o caixão, as lágrimas nos olhos só lhe permitiam ver um borrão de cores-de-flores.
       - "E não é aí que ela está." - Disse, novamente, a senhora.
       E o rapaz continuou. - "Ela se foi. Está em um lugar mais feliz agora. A felicidade que ela tanto almejara, uma hora eu sabia que ela iria conseguir. Sua alma se foi, esvaneceu-se no éter da nossa memória. E agora só nos resta despedir-nos da casca que ela nos deixou. O corpo inerte. O elo físico da memória. Que agora, nesse momento, nós iremos enterra-lo para que sempre tenhamos uma imagem perfeita de sua beleza. Seu corpo será esquecido, mas sua alma nunca. Nunca esqueceremos da sua voz, nunca esqueceremos da sua beleza, das suas canções. E estas lágrimas que hoje nós choramos irão se cristalizar e formar as paredes de vidro do castelo que será a tua morada eterna. As lágrimas que hoje nós choramos por amor à tu que se foi, serão a fundação das coisas feitas de amor que sustentarão a casa que será a tua morada eterna na nossa memória."
       Ele olhou para o caixão, a luz do por do que incidia diretamente sobre a pele pálida da garota criava um tom alaranjado, e sombras nos contornos das marcas de expressão. As contas das pulseiras de ouro refletiam uma centelha de luz sob os pontos largos da mortalha de linho. Os cabelos enredados nas flores absorviam o calor do sol. E quem quer que se aproximasse, tocasse as madeixas negras, sentiria o calor, e de fato diria que ela aparentava estar apenas dormindo.
       Algumas pessoas chegavam, trocavam algumas palavras com a família, despediam-se do corpo e saíam. Roupas negras de despedida e palavras vazias de consolo. O ar quente do final do verão soprava pelo cômodo e trazia o cheiro de grama para o lugar. Os tecidos balançavam, as jóias brilhavam e as pétalas se espalhavam. As laterais cor-de-ébano do caixão eram o repouso das mãos dos visitantes. Ninguém se atrevia a encostar nela. E todos diziam a mesma coisa. -"Ela está serena, parece que está dormindo" -
       O rapaz olhava para o chão escuro de madeira, as marcas de sapatos no chão encerado. Perdia-se nos pensamentos e nas lembranças. Ao olhar novamente para a senhora ele viu que ela lhe olhava com um sorriso discreto e contido. E ele novamente falou. - "Ela foi embora. Por egoísmo tirou a própria vida sem se importar com o amor que nós sentíamos por ela. Tirou-nos toda a felicidade que ela proporcionava-nos. E cruelmente, como se o nosso barco tivesse batido em um recife, ela afundou-se na depressão, deixou-se levar pela maré da tristeza. E no momento em que seus pulmões encheram-se de água ela não quis nadar. Ela deixou-se afundar. Recusou as boias que todos nós jogávamos para ela. Agora quem cospe a água salgada somos nós. Nós que amarga-mo-nos por não termos segurado a sua centelha de vida. Deixamos o último fio de vitalidade ser levado pela correnteza. E sem se despedir ela misturou-se nas ondas. Fora levada de nós. A espuma branca da água agora mistura-se com o branco das suas roupas. Quisera eu que ela estivesse aqui para ao menos ouvir a nossa despedida."
       O rapaz novamente olhou para a senhora, viu a peculiaridade das coisas que não tivera visto antes. Enquanto ela olhava-o e sorria pacientemente ele esquadrinhou-a. Viu as roupas negras, os xales de renda sobre os ombros. Os olhos escuros, cheios de luz. As rugas na pele branca. O corpo atarracado. As mãos. Os dedos repletos de anéis. Um de cobra, um de pérolas, e um de filigranas. Assustou-se com a coincidência. E olhou para os olhos da senhora, que abriu-lhe um largo sorriso e lhe disse. - "Ela está aqui sim para ouvir você despedir-se." - Ao completar a frase a senhora levantou-se. Ele atônito não conseguia sair do lugar. Conforme a senhora caminhava em direção à porta ele viu que os pés dela estava descalços. A bainha da saia estava molhada e cheia de areia. Viu pétalas de flores nos cabelos. Ele tentou segui-la com os olhos, mas a luz do sol cegou-lhe a visão. Ele levantou-se e foi atrás dela. Ao chegar à porta ele não viu ninguém. Nem um sinal da senhora. Ouviu o barulho de mar. E uma risada. Não uma risada irônica e zombeteira. Era uma risada familiar, uma risada de quem guarda um segredo.
       A mãe da garota aproximou-se dele e disse. - "Menino, vamos pra casa, você passou o dia todo aí, sentado na cadeira sozinho. Precisa comer alguma coisa."
       Ele virou-se, e sorrindo dirigiu-se à garota.
       Com um beijo na testa despediu-se. 

Folhas secas.


       Ela nunca tivera visto aquela tatuagem dele. Surpreendeu-se quando viu ele sem camisa. Eles estavam sentados à beira da piscina, o verão começara a alguns dias, e essa era a primeira vez que eles tomavam banho juntos. A tatuagem era de uma grande folha de bordo, na parte superior direita das costas, quase no ombro, era grande, apenas a silhueta preenchida de preto.
      - “Que legal essa sua tatuagem” - Disse ela apontando para o ombro dele. Ele virou-se, encarou-a nos olhos e pulou na água. Ela rindo, pulou logo atrás. Mergulharam juntos. - “Por que é que você tem essa tatuagem?” - Disse ela, após retomarem a superfície.
      Ele novamente não respondeu-a, mergulhou, e ao retornar disse: - “Minha Mãe.” - Virou e deixou-a examinar mais de perto a tatuagem.
      Ela, tocando a tatuagem com a ponta dos dedos molhados perguntou: - “Você nunca me contou dela. Nem da tatuagem e nem da sua Mãe. Eu sei que todas as suas tatuagens tem significados importantes na sua vida. Os koi nos braços, a flor-de-liz, o coração no seu peito. Mas essa, eu nunca soube.” - Ele virou-se, deu um beijo nela, e subiu até a borda da piscina. Sentou-se com os pés tocando a água e disse:
      - “Essa é uma das poucas lembranças que eu quis ter dela.” -
      - “E por que é que você não quis guardar outras lembranças? Ela foi ruim pra você?” - 
      - “Muito pelo contrário. Ela foi ótima. É que essas lembranças são tristes demais pra mim.” - 
      - “E por que elas te trazem tristeza?” -
      - “Lembrar de alguém que já se foi não traz felicidade alguma. Abrir o baú da memória e chafurdar em memórias de anos sofridos.” - 
      - “Ela te fez sofrer?” - 
      - “Não, eu sofri com ela. Eu sofri por ela.” - 
      - “Ela sofreu tanto assim? O que a fez sofrer tanto?” -
      À esta altura eles já estavam fora da piscina, ele recostado em uma estiradeira olhando para o alto. Ela sentada diretamente à frente dele, absorta olhando ele contar  aquela história. Ela conhecia-o faziam três anos, e durante todo esse tempo ele nunca falara da própria mãe. Há tempos ela quisera saber disso e ele mostrara-se evasivo. Talvez essa fosse a hora, talvez ela adquirira suficientemente a confiança dele, talvez agora ela saberia toda a história da dita tatuagem cujo significado lhe intrigava.
      - “É, ela sofreu. Desde sempre a vida lhe surrou na cara. Até o dia em que a vida lhe nocauteou. Mas não, não foi um nocaute rápido. Foram lentos e cruéis seis anos.” - 
      - “Seis anos de que?” - 
      - “De doença.” - 
      - “Começou já quando ela era jovem, e no final da vida dela foi aterrador, devastador, lento e torturante. Ela arrastava-se em uma sobrevida desgraçada e dependente. Já nos seus oito anos ela apresentou os primeiros sintomas, musculatura fraca, pouca resistência óssea que culminava em ossos facilmente fraturados. Ainda me lembro de todas as histórias que ela me contava, de como ela vivera a sua infância, de como ela fora feliz. Ainda lembro-me das nossas conversas sentados à mesa, tomando café, eu absorto assistindo ela derramar suas memórias sobre mim. Ela sempre me falava de como fora o lugar em que ela morou quando era criança. Um bairro industrial, ela morava perto de uma fábrica que processava mate e perto de uma outra de fósforos. Ela sempre dizia que o cheiro de lá era algo peculiar, o enxofre e o mate subiam ao ar todas as manhãs, funcionavam como um despertador. No final da tarde o céu adquiria uma coloração laranja devido às chaminés das fábricas. Ela contava-me que as ruas que hoje são um caos de carros eram calmas ruas de pedras, onde ela brincava de bola com as outras crianças da rua. Onde haviam casas da metade do século XX hoje existem postos de gasolina, prédios comerciais, estacionamentos. O prédio que ela morou fora construído na década de quarenta. Seu avô morara naquele prédio, ela quando jovem morou naquele prédio, hoje eu moro lá. O prédio é de três andares, foi perfeitamente construído, suas sacadas possibilitam a vista quase integral da rua. Ela sempre falou dessa vista, a rua cercada por grandes Bordos, quase centenários, que davam sombra à rua. No outono essa centena de árvores perdia as suas folhas, o chão virava um grande tapete vermelho de folhas mortas e quebradiças. É lindo de se ver.” - Ele contou tudo isso com extrema naturalidade, as palavras fluiam feito cascata e ela assistia a tudo como uma criança que é hipnotizada pelas fantásticas coisas da tv.
      - “Eu me lembro de quando você me levou lá, na sacada nós tomamos café e fumamos alguns cigarros enquanto olhávamos os carros passarem.” - 
      Ele retomou a sua história como se não tivesse ouvido o que ela disse, estava tão concentrado nas suas próprias memórias que não se importava com o que ela dizia. - “Ela contou-me da primeira vez que a sua doença a deixou de cama. Ela fora ao teatro com seu pai, meu avô, e caíra de uns pequenos degraus, seus óssos frágeis não aguentaram a queda e facilmente se partiram. Ela ficou algumas semanas sem poder andar, ficava de cama a maioria do tempo, até que suas pernas adquirissem resistência novamente para ela poder caminhar. Eu me lembro desse teatro, quando eu era criança ela me levou lá para ver algumas peças, Alice, Gato de Botas, Inferno de Dante, Anjo negro,e algumas tragédias gregas cujo nome não me vem à mente. Eu não entendia o que todas aquelas pessoas faziam lá, até mesmo nas peças infantis, mas eu simplesmente ficava deslumbrado com todas as luzes, as roupas, as máscaras. Ficava extasiado com a beleza que era aquilo tudo. Ela dizia-me que embora eu não entendesse eu me lembraria de tudo aquilo um dia. Lembro-me dos acentos de estofado vermelho, do palco de madeira, das cortinas de tecido pesado, do fosso da orquestra. Aquilo tudo era simplesmente lindo, a beleza escondia-se em cada entalhe, cada detalhe das paredes, cada palavra proferida pelos atores. Cada minucia entalhada nas cores que prendia o olhar de todos os espectadores. Depois do teatro veio a biblioteca, ela levava-me lá pelas manhãs. A caminhada não era das mais longas.  Ela levava-me à seção infantil, e eu perdia-me lá por horas, revirando as estantes. Sentado em almofadas a manhã toda eu lia dezenas de volumes. O tempo foi passando e até a época em que a caminhada eu já fazia sozinho, ela não acompanhava-me mais. Além de ler os livros lá, eu trazia cada dia alguns livros para ler em casa. Ela chamava-me de ‘Pequena traça de livros’. Eis que no final dos seus dias, quem tornara-se a traça de livros fora ela. Seus músculos perdiam cada vez mais as forças, ela ficava a maior parte do dia deitada na cama. Eu trazia-lhe livros de todos os tipos, qualquer um que eu pudesse encontrar eu lhe trazia. Ela lia feito louca, passava horas e horas deitada lendo, até adormecer com o livro nas mãos. Até hoje eu tenho essa pequena coleção de livros que eu lhe dei.” -
      - “Tá explicada toda essa cultura.” - Disse ela em tom de brincadeira. Ele sem perceber o que ela disse continuou:
      - “Da nossa janela nós víamos um bar. Os letreiros vermelhos apareciam de noite através das cortinas. O chão preto e branco tinha um ar retrô. A fumaça de cigarros baratos subia em direção às luminárias baixas em cima das mesas de sinuca. Garotas em vestidos curtos e caras de topetes brilhantes vinham dançar juntos o Blues agitado. Minha mãe fora uma dessas garotas. Eu ainda tenho uma foto dela de vestido vermelho, saltos altos, e pernas de dar inveja a qualquer garota. Grandes olhos cor-de-esmeralda hipnotizavam qualquer um que olhasse-a. Era irresistível. Lá, ela conheceu meu pai. Em meio à cartas de baralho, cerveja, banheiros sujos eles conseguiram se envolver em um romance sórdido demais. Era brutalmente carnal, sexista e lascivo. E descuidado também. Ao descobrir que minha mãe estava grávida ele rapidamente saiu da cidade. Sem telefonemas, sem cartas, sem fotos. Sem lembrança alguma. O canalha simplesmente desapareceu feito mágica. Ela sofrendo foi pedir ajuda à mãe, que cruelmente a rejeitou. ‘E eu lá vou criar neto bastardo? Filho de mãe solteira?’. E novamente ela viu-se abandonada e despejada à sua própria sorte. Alguns meses depois dessas palavras cáusticas a minha avó faleceu, deixando de herança o apartamento da Rua-dos-Bordos. Minha mãe foi para lá, grávida e com pouco dinheiro. Nos meses seguintes ela teve de se virar sozinha, fazendo trabalhos pequenos. Vivendo de forma modesta. O final da gravidez foi difícil, ela já não tinha mais força nas pernas, sair de casa era cada vez mais difícil. Ela pensou em desistir, mas também pensou que seria egoísmo e crueldade acabar com uma vida que não tem direito algum de lutar para sobreviver. Após meu nascimento ela conseguiu estabelecer-se financeiramente. Nos meus primeiros anos de vida nós não vivíamos no luxo. Tínhamos o necessário. Ela decidiu não me criar no supérfluo, nada de luxo, nada de mimos. Conforme eu crescia ela investia mais e mais na minha educação. Dizia-me que a cultura e o conhecimento era algo que nunca poderiam me tirar. Comprava-me livros. Víamos filmes, peças de teatros, concertos. Éramos felizes nesse nosso companheirismo. Um era tudo que o outro tinha. Eu cresci assim nesse conto de fadas até meus doze anos, até o dia que a vida decidiu que era boa demais. O gelo-fino em que minha mãe vivia quebrou-se. Ela que, durante sua vida adulta, nunca tivera problemas mais sérios com sua doença começou a ter um derradeiro fim, definhando lentamente nos seis anos seguintes. No começo, eram apenas fraquezas e dores leves. Depois era insuportável, ela lutou por não conseguir mais mover os músculos da perna. Perdia a força à cada semana. Primeiro vieram as muletas, depois a cadeira de rodas. Nós tentamos levar a vida normalmente, mas era impossível, simplesmente não dá pra ficar bem quando se tem tamanho problema. Ela foi orgulhosa e resistente. Nos três anos seguintes nós vivemos em adaptação, cada dia a doença avançava mais. Cada vez nós tentávamos criar um novo jeito de dribla-la. Ela já perdera os olhos vívidos, eles tornaram-se opacos, reflexo do sofrimento de uma vida perdida. Depois, ela começou a mostrar claramente sinais de desistência. Os médicos não conseguiam fazer nada, simplesmente aliviar-lhe a dor. Aí foi que o vício veio, ela começou fumando alguns cigarros para ver se a dor passava. No final ela fumava o dia todo, o cheiro no quarto tornara-se insuportável. O vício era para fazê-la esquecer um pouco do sofrimento, não passava de uma fuga. Com cinco anos do início do agravo a doença chegara em um estágio crítico, ela já perdera completamente o movimento das pernas. Passava o dia todo na cama. Ela passava o dia todo tomando café e fumando. Lia livros por não ter mais o que fazer. Via filmes quando não conseguia pensar de cansaço. Eu costumava sentar com ela para conversar e olhar os carros passando na rua. Com a chegada do outono ela já perdera completamente suas forças, os médicos a sedavam na maior parte do dia. Ela já havia perdido o controle, tentou o suicídio com cortes nos pulsos.” -
     Ela esboçava algumas lágrimas, olhos vermelhos, cenho franzido e lábios crispados. Contraía-se contra o choro involuntário.
      - “Nas suas últimas semanas, enquanto ela olhava para a rua coberta de folhas vermelhas que caíram no outono ela disse-me: ‘Sabe filho, no final de tudo a dor não é nada tão diferente do outono. O outono vem, derruba todas as folhas e depois passa e todo mundo esquece. A dor vem, te derruba, te destrói mas no final você esquece dela, acostuma-se com ela. E depois que tudo acaba só sobram as folhas secas esmagadas pelo chão. Só sobra você escurrassado e destruído.’ Ela havia perdido toda a sua fé, toda a sua esperança. Havia conformado-se com a morte, com o esquecimento. Eis que um dia que eu saio eu chego e a encontro em absoluto silêncio. Um silêncio que nunca mais iria ser quebrado. Em meio a cinzeiros, livros jogados e um filme esquecido na tv ela havia perdido completamente as suas forças. Os médicos disseram-me que seus músculos do tórax já não conseguiam mais fazer o trabalho corretamente. Respirar ficava cada vez mais difícil, até a hora em que ficou impossível. Ela morreu cruelmente, lentamente asfixiada na própria impotência de não conseguir mover-se tamanha era a degeneração muscular. O velório não fora cerimonioso, poucas flores e pouca gente. O triste não foi a despedida, nós ficamos tão desorientados com o choque que mal temos noção do que acontece. O cruel é a vida seguinte, ver que todos os dias ela já não está mais lá pra ler com você. Que você não vai mais sentar-se na cama e ouvir as suas histórias. Eu sinto falta do cheiro de cigarros no quarto. Era como se eu ainda tivesse a presença dela lá enquanto seu cheiro permanecesse. Eu ainda sento na cozinha com o café esperando que ela venha sentar-se a mesa para nós conversarmos. E talvez eu continue a fazer isso todos os dias só para poder sentir sua constante presença. E de fato no final só ficaram as folhas secas, as lembranças esmagadas pela dor que nós não vamos nunca mais esquecer. Ela tornou-se a minha folha seca, a centelha de vida que cai da árvore, fica esquecida no chão, seca, definha, é estraçalhada, despedaçada. Eis que na minha pele eu tenho a minha folha seca, a minha lembrança, eis que eu ainda a tenho em mim.” - 
      Ele com um pulo rápido levantou e foi para a piscina, talvez fosse para disfarças as lágrimas, ou se não para clarear a mente. Ela sentada tentava absorver os detalhes de tudo que ouvira, com o olhar perdido e a mente fervilhado ela virou-se e olhou para a água. Viu a silhueta do rapaz distorcida pela água e decidiu pular atrás. - “Essa sua folha seca é muito mais que isso. São suas lembranças, suas dores, é toda a sua vida concentrada em alguns centímetros de tinta na sua pele. É a folha seca, que tornou-se a sua mãe, que jamais será esquecida.” - 

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O que você vai fazer, Katy?

Tu escreveu na minha carne, com as unhas e os dentes, que eu sou teu. 
Tu escreveu nos meu olhos, teu sorriso. 
Tu escreveu no meu peito, com palavras, o amor. 
Teu batom vermelho riscando as minhas roupas e teus beijos ardendo na minha boca.
De palavras contornadas, letras reescritas, eu fiz o meu texto.
Em devaneios de loucura eu só sabia falar de uma coisa: você.
De madrugada, ouvindo a poesia que nunca será escrita.
Escutando o silêncio das palavras que nunca serão ouvidas.
Eu quebrei a tua promessa, quis te fazer acreditar em amor.
Te fiz um samba que começava com V.
Samba de compasso quebrado, das palavras enredadas no cabelo enrolado.
E no meu teto alto, ecoando as nossas palavras, suportando a minha vontade.
Do teu coração calcinado de sofrer, eu extraí o fel amargo que lhe encobria de dúvidas.
Cuidei dos ferimentos e preenchi de carinho as dores causados pelo tempo.
Juntei os cacos da tua alma e construí um mosaico com as cores dos teus olhos.
Te banhei nas palavras de amor,para daí poder ouvir o doce das tuas palavras de recomeço.
Te guardei debaixo da minha asa de carinho e te levei pra voar no oceano dentro de mim.
Senti o perfume pungente da tua pele. Vi teus olhos negros que me puxavam pra dentro de ti.
Ouvi o som melódico da tua voz fora de si, a orquestra de sentimentos guardados que tu cantara pra mim.
E no momento dourado das nossas conversas tu virou minha cabeça do avesso para ver do que eu sou feito.
Tu arrancou de mim todos os meus falsetes só pra se agarrar no cerne da minha personalidade.
E agora, tu me tem inteiro.
in-tei-ro


sábado, 10 de setembro de 2011

Olhos Vermelhos



Texto escrito em Julho de 2011, continuação de "isso não é amor".


       Já passava das oito horas da manhã. O sol batia na janela, passava pelas persianas e criava longas linhas de luz pelo chão. Ela dormia um sono pesado. O dia anterior fora terrível. As lágrimas mal tinham secado, a ferida ainda não havia cicatrizado. O barulho do telefone a acordou. Ela olhou quem chamava e deixou tocar.
      - “Não, esse canalha não está me ligando, só pode ser mentira. Ainda mais essas horas.” - Largou o telefone no chão e quis voltar a dormir. O barulho não deixava.
      Ou seria o desejo de atender o telefone?
      - “O que é que ele quer? Aquilo tudo de ontem já não foi o bastante?” -
      Ela sentou-se na cama. O telefone ainda tocava.
      - “Ele não vai desistir tão cedo.” - Foi em direção à cozinha e preparou um café.
      Enquanto isso o telefone incessantemente tocava.
      - “O que é que ele tem pra me dizer? Ele já pisou em mim ontem e ainda me liga para por o dedo em cima da ferida?” -
      Foi ao banheiro lavar o rosto. Olhou-se no espelho e viu os olhos cansados de quem passara a noite toda chorando. Olhos cansados que quem já tinha esgotado todas as suas forças para manter um relacionamento há tempos decadente.
      São olhos de tristeza?
      - “São meus olhos de orgulho.” - Ela pensou. - “Olhos de quem vai superar a tragédia, inflar o peito com orgulho e dizer de boca cheia que tudo aqui não foi nada.” -
      Ela queria um cigarro, desde ontem não sabia onde eles foram parar. Na volta da casa dele ela procurou nos bolsos da jaqueta e não achou.
      - “Já sei, estão na sacola que com tanto desdém ele me devolveu.” - Procurou a sacola pela casa e encontrou-a em cima do sofá. Abriu-a. Tirou uma casaco de dentro e jogou-o em um canto. - “Eu gostava desse casaco” - Pensou ela.
      Achou os cigarros e o velho isqueiro prateado, batido e judiado de tantas quedas, já estava gasto e surrado. Foi até a cozinha e pegou seu café, acendeu um cigarro e foi para a sacada. Continuou a vasculhar a sacola e lá encontrou algumas fotos suas.
      O telefone ainda tocava.
      - “Essas nossas fotos, em nem me lembrava mais delas.” - E em um ápice de ódio ela pegou o isqueiro prateado e ateou fogo nas fotos uma a uma. A chama se expandia e consumia rapidamente o papel. Transformando imagens em um borrão de bolhas de calor e tinta derretida. As cinzas acumulavam-se no cinzeiro. Um monte acinzentado que balançava com o ritmo do vento.
      Já era o terceiro cigarro?
      Já se fora a última foto. - “Já se foram todas as minhas lembranças.” - Pegou o cinzeiro e virou-o para que as cinzas caíssem para fora da sacada. Olhou o vento carregar as partículas espalha-las pelo céu. - “Deixa que o vento leve essas cinzas, essas fotos queimadas. Deixa que ele espalhe e desintegre todas essas minhas lembranças de você.” -
      O telefone ainda tocava. - “Tá, que se dane, eu vou atender, não tenho nada a perder mesmo” -
      - “Oi.” - Ela disse.
      - “Ahn? Oi?” - Ele surpreso falou ao o telefone. Já estava desistindo. Sabia que ela não iria atender. 
      - “O que é que você quer?” - Disse ela em tom firme. Queria demonstrar austeridade. Queria demonstrar poder e superioridade. Não ia curvar-se diante dele como havia feito ontem. 
      - “Eu queria te pedir desculpas. Eu estava com raiva ontem.” - Ele disse sem hesitar. Seria melhor que ele falasse de uma vez, sem rodeios.
      - “Desculpar é o cacete.” - Ela respondeu rapidamente.
      - “Eu estava fora de mim. Eu havia perdido o controle. Você sabe o que você fez para me deixar assim. Eu não queria ter feito tudo aquilo.” - Ele choramingava desacorçoado, havia se excedido, perdido os limites. Estava acabado. Sentia pena de si mesmo e queria que ela também sentisse.
      - “Eu que te deixei assim? As tuas vadias é que vão te desculpar. Eu sou uma mulher feita e não preciso de um moleque chorão que se arrepende do que faz e depois vem choramingar todo arrependido. Eu sou muito melhor do que isso.” - Ela falou sem pestanejar. Tudo estava saindo bom demais. Agora era a vez dela maltrata-lo. Era ela quem ia pisar e rejeitar dessa vez. - “Eu pouco me importo de como você está. Você pode estar o lixo que você está que eu não vou me importar nem um pouco. Sabe, eu gostei do que eu fiz. Eu fui ao delírio procurando prazer em outros corpos muito melhores do que você. Eu não preciso mais de você. Eu não quero mais caras como você.” - 
      - “Eu só queria que nós fôssemos como antes, antes de tudo isso começar. Eu queria que nós ainda tivéssemos esse nosso antigo amor.” - 
      - “Isso não é amor.” - Disse ela, pausadamente.
      - “É o que então?” - Ele perguntou esperançoso.
      - “É enganação. Eu me enganei querendo amar você. Eu te enganei enquanto amava os outros. Essa coisa sórdida que você chama de amor e só fazia me cansar.” - E lá se ia embora toda a esperança. 
      - “Eu queria voltar a escrever a nossa canção juntos.” - Ele continuava tentando. Continuava batendo na mesma tecla. Incessante e esperançoso.
      - “Teu blues acabou, baby.” - Ela secou as lágrimas dos olhos vermelhos. Jogou pela sacada a ponta do cigarro e desligou o telefone. - “Teu blues acabou.” - 

Resiliência




Resiliência
(inglês resilience)
s. f.1. Fís. Propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer choque ou deformação.
 2. Fig. Capacidade de superar, de recuperar de adversidades.
       “Eu aposto como você deve estar pensando em como tudo isso ia terminar.” - Disse ele em tom baixo. Vestia um sobretudo de lã cinza e botões transpassados, de corte italiano, elegante. A barba já estava alguns dias por fazer. O cabelo desgranhado. Os olhos vermelhos de quem tinha muito pra chorar, mas não o fazia pois não tinha mais forças. Aparentava estar cansado, fazia alguns dias que não pregava os olhos de noite. - “Sabe, eu só preciso de um banho, de roupas limpas, e de um bom café quente. Aí eu sei que tudo isso vai passar, e que eu vou me esquecer de você.” - 
       Conheceram-se em um bar, ele ia costumeiramente lá, apenas para tomar algumas cervejas, sempre desacompanhado. Ela era a primeira vez que ia. O bar não passava de um boteco barato, escuro, com as paredes engorduradas e mesas de madeira velha, riscada, batida, e quebrada. O chão preto e branco já estava desgastado pelo tempo. O balcão era de pedra, tinha marca de copos, queimaduras de cigarro e alguma coisa que ele imaginava ser sangue seco ou talvez apenas blood mary derramado. Tudo naquele lugar parecia velho, usado, esquecido.
       Ele estava sentado em uma das banquetas apoiado sobre o balcão. A cerveja quente já no final. Chamou o barman. - “Me dá mais uma.” - disse, levantando a garrafa. Sentiu um perfume. Algo que desviou sua atenção por alguns segundos. O cheiro era mais forte que o ranço humano daquele lugar, um cheiro gorduroso, era de dar nojo. Mas ainda assim o cheiro dos seus cigarros o faziam esquecer o cheiro detestável daquele lugar. Uma garota sentou-se ao seu lado. Aquele perfume era dela. 
        “Eu acho que você deveria estar bebendo alguma coisa mais forte.” - Disse ela. 
       Ele olhou-a por alguns segundos, cabelos curtos, loiros na altura dos ombros, vestia um vestido de seda vermelho e saltos altos. Os braços finos pousados sobre as coxas. E aquele perfume. Era doce, mas não doce em excesso à ponto de enjoar. Era apenas hipnotizante.
       “E porque é que você acha isso?” - Perguntou ele.
       “Porque eu quero ver você perder o controle.” - Disse ela com um sorriso malicioso.
       “Você nem me conhece, e já me vem com esse papinho de descontrole. Eu lá sou pessoa de perder o controle?” - Já começava a demonstrar-se indignado.
       “Sim, você vai perder o controle, eu conheço seu tipo.” -
       Olhou desconcertado para ela. - “Não, você não conhece o meu tipo.” - Desafiou.
       “Então eu quero conhecer.” - Disse ela em uma resposta rápida.
       “Muito prazer, me chamo James.” - Disse ele com um sorriso irônico.
       “Ora, eu sou Vanessa.” - Seu semblante demonstrava um tom sarcástico, os lábios vermelhos contraidos em sorriso retraido. Os olhos verdes semi cerrados à luz baixa. 
       Depois de algumas tequilas, algumas palavras jogadas fora, a conversa ficou mais íntima, os toques eram mais frequentes, as mãos encontravam-se e os corpos aproximavam-se. Um buscando o calor do outro. Os olhos encontraram-se. Ambos tinham um olhar de lascividade latente. Ambos já estavam bêbados, decidiram andar um pouco. Foram parar em um pier. Sentaram-se com os pés encostando na água. Ela vestia o sobretudo cinza dele. Os sapatos de salto alto estavam largados ao lado das botas de couro dele. 
       “Sabe, eu acho que eu poderia morrer agora.” - Disse ela descontraidamente. Como quem diz não para ser ouvida, mas apenas para falar consigo mesmo.
       “E porque?” -  Perguntou ele. 
       “Porque isso tudo é lindo demais, é tão lúdico.” -
       Suas vozes eram supressionadas pelo som do mar. Os olhos estavam fixos nas estrelas. O horizonte fundia-se com o escuro do mar. Era tudo escuro. Viam-se poucas luzes, apenas alguns barcos. Olharam-se. Novamente a lascividade. Os rostos aproximavam-se cada vez mais, os lábios retestados com medo de dizer alguma coisa que fosse dar errado. Olhavam-se profundamente. Ela beijou-o. Avançou sobre ele como um tigre que agarra uma presa. As alças do vestido já lhe caiam sobre os ombros. Ele rendido com o peso dela sobre ele não podia fazer nada. Não queria fazer nada. Pra falar a verdade ele queria sim fazer, não queria é resistir. Fizeram amor lá mesmo, ninguém passava por aquelas bandas fazia algumas horas, ninguém veria nada. Não, aquilo não era amor. “Fazer amor” não passa de um eufemismo batido. Aquilo foi sexo do mais brutal. Ambos estavam em uma paixão carnal momentânea. Deixaram os instintos agirem. Tornaram-se animais durante algum tempo apenas em busca de um prazer recíproco. Aquilo não era amor. Não havia amor algum. Era apenas sexo. 
       Depois foram para a casa dele. Mais algumas horas de entretenimento lascivo direcionado pela bebida. Dormiram juntos, na mesma cama. Abraçados. Ele tinha o perfume dela na pele. Ele acordou sozinho, enrolado nas cobertas. Olhou para os lados e viu ela procurando as suas roupas pelo chão. 
       “O que é que você está fazendo?” - Perguntou ele. Ainda com a voz embargada de sono.
       “Indo embora.” - Disse ela enquanto colocava a delicada calcinha de renda.
       “E porque?” - Sentou-se na cama com um pulo assustado.
       “Por que sim, oras. Você tem dinheiro pro táxi?” - Respondeu ela, sem olhar para ele enquanto arrumava os cabelos no espelho.
       “Pensei que você ia ficar, que nós íamos passar o dia juntos.” - Disse ele enquanto levantava-se.
       “Você pensou o que? Que isso tinha sido amor? Que isso tinha sido especial? Não, isso foi só sexo, querido.” - Ele atônito não sabia o que responder. - “Você acha que a vida é um lindo livro do Dostoiévski onde a ‘Beleza salvará o mundo? Ah, pare de ser idiota.” - Ela sentiu a ira crescente nele.
       “Vai, vai embora.” - Disse ele pegando a carteira. Jogou algumas notas no chão e disse: “Não sei nem porque eu perdi meu tempo acreditando em alguma coisa.”
       “O amor não existe, meu querido. Você foi simplesmente meu brinquedo. Agora que eu estou satisfeita eu vou embora.” -
       Ele estava ensandecido. Havia perdido o controle. Estava com raiva. Queria que ela desaparecesse. Queria nunca mais lembrar dela. Ele deu-lhe um tapa no rosto com as costas da mão. Queria descontar aquela raiva. Queria que ela sentisse alguma da mesma forma que ele estava sentindo. Se não fosse dor, seria a vergonha. Ela perdera o equilíbrio e fora parar no chão, olhava para ele com as mãos na boca. Assustada. Mas ela levantou-se. Com um sorriso irônico de que ganhou.
       “Viu, eu te falei que você ia perder o controle.” - Pegou as notas do chão, pegou sua bolsa e saiu com os sapatos de salto alto na mão. De passos leves. Bateu a porta.
       Ele sentou-se na cama. Começou a chorar, não sabia porque estava chorando, talvez fosse a sua forma de lidar com a raiva depois que ela passava. Não queria ter feito o que fez. Não queria que as coisas tivessem acabado da forma que acabaram. Poderia ser tudo diferente. - “Eu aposto que você já sabia como tudo isso ia terminar.” - Saiu para caminhar um pouco, tomar um café. Vestiu as mesmas roupas da noite anterior. Elas ainda tinham o cheiro dela. - “Sabe, eu só preciso de um banho, de roupas limpas, e de um bom café quente. Quero tirar esse seu cheiro de mim e te esquecer. Esquecer o que eu fiz. Esquecer tudo.” - Suas mãos tinham algo que ele não sabia ser se era sangue ou batom vermelho. 

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Caleidoscópio Japonês - Compartilhando a Folha e a Fumaça.

Texto escrito em co-autoria de Verônica Hiller do Girl Sets Fire. Do outro lado da moeda, a outra parte da história.
Eu falo, Ela fala. 

Parte I: Caleidoscópio Japonês.

       E eu vi teus olhos negros cristalizando o céu. A imagem formava-se nas tuas pupilas sem fim e refletiam um caleidoscópio brilante. E tu estava lá, abraçada a mim, tua presença notava-se enlaçada de calor em meu corpo. Feito as mãos que seguram uma xícara quente. As tuas mãos frias chocavam-se com a temperatura das minhas. Não haviam palavras. Não havia som. Não havia voz. Só a luz que refletia dos teus olhos e dizia-me 'vem'. Não havia tempo, não havia chão. Éramos só nós e o céu.
       Nós, amantes no Japão, nos compartilhávamos. Um usufruía da presença do outro. Deliciava-mo-nos com as palavras, com os sorrisos, com nossos beijos. Tu virava minha cabeça ao avesso para ver do que eu sou feito. Tu me analisava, me manipulava com teus jogos psicológicos, desejos teus ocultos em elogios discretos. Jogos estes que eu já sabia, mas deixava-me cair neles pois eles simplesmente me levariam para aquilo que eu desejava: você.
De café e cigarros, 
beijos e abraços, 
elogios e egos, 
nós fizemos nossa tarde. 
Nós nos fizemos um pro outro.
Nós nos fizemos felizes.


Parte II: Compartilhando a folha e a fumaça.

       As arestas do teu sorriso diziam-me para não parar de te beijar, minhas mãos suplicavam as tuas. E o vento que vinha, bagunçava teus cabelos, me dizia que teu cheiro já não sairia mais da minha pele. Tuas lágrimas de outrora já haviam secado, eu só me importava com teus sorrisos de agora. Acabou a música mas a poesia não terminou.

       Acabou o esconde-esconde mas a chama não se apagou.

       O incêndio só havia começado. tua língua ferina inflamava o desejo em mim.

       O teu gosto de fumaça que me tirava o ar,

       A chama escarlate na ponta dos teus lábios, teu orgulho auto-suficiente,

       E a tua respiração me dando arrepios, os teus olhos dizendo qualquer coisa impossível de decifrar, e só meu coração esburacado eu conseguia te dar,

       A vontade implícita de nunca mais te largar, suprimida nas linhas dos teus olhos que se desmanchou em um contorno borrado,

       E a luz do chão se acendeu enquanto meus parágrafos já iam sendo teus, e a manta amarela, outrora quieta, carregando os segredos do nosso céu.

       Tua tez irônica me dizia, mesmo assim, que o revés não funciona. a retórica das declarações perdia-se nas palavras de amor.

       “Por que não começamos isso antes?”

       Por entre os galhos e as folhas, cabelos e palavras, já não sabíamos onde isso ia parar, não é dor, é outra coisa: é amor, já dizia qualquer coisa.


Daquele dia que nós nunca esqueceremos.
04/09/11





sábado, 3 de setembro de 2011

Deus.

      Se deus existe, ele está na música. O êxtase da experiência sensorial que qualquer ser pode experimentar. É a beleza representada em melodia. Teu deus não é o ser incorpóreo que gere a tua vida. Deus é mais humano que todos nós. A experiência sensorial incorpórea elevada a um nível de ascendência. É tudo aquilo que nos faz humanos demais. E toda essa nossa humanidade nos foge às mãos está atrelada às sensações mais íntimas de nós. Cada ser é o seu próprio deus. Dentro de si, há um deus simplesmente esperando para ser descoberto. E cada sensação nos aproxima do "nirvana". O momento em que não há mais corpo físico e nós estamos imersos dentro das nossas próprias impressões.
      Deus é a beleza. As idéias inatas de um ser que transformam-se em arquétipo. Arquétipo este que forma o deus que há dentro de nós, é o Platão invertido. Nossas experiências divinas são feitas das nossas concepções primordiais. Algo escondido dentro de nós, que quando descoberto eleva-nos à sensação de transcendência. O mais próximo que nós chegaremos de encontrar deus será no ápice da nossa percepção sensorial. Quando  aquilo que nós sentimos torna-se algo além do físico. Você não ouve mais a música, você sente a música. A música já faz parte da sua carne, seus dedos nas teclas do piano são a música. Quando a música já deixou de ser algo exclusivamente para se ouvir e torna-se algo concreto para se sentir. Ela tem corpo, ela entra em ti, ela faz parte de você.
      E a beleza esconde-se nesse jardim selvagem que é a vida. Nós crescemos e nos desenvolvemos de forma desenfreada, sem controle. Como se nós fôssemos uma grande floresta. Nós nos desenvolvemos e dentro de cada um há uma beleza natural, inata, algo que todos nós almejamos. Como que uma flor perdida dentre as árvores, só esperando para ser encontrada. A flor perfeita que é a síntese das nossas idéias primordiais, inatas à nossa humanidade. E dentro de nós mesmos, perdidos nessa floresta, nós nos deparamos em alguns momentos da vida com a nossa própria flor. A flor que há dentro de nós e nos faz perceber toda aquela beleza que nós sempre almejamos. A beleza que te leva ao êxtase sensorial. À mais crua sensação humana. E é nesse momento, que encontramos a nossa flor, que nós estamos perto de deus. O nosso deus humano. O deus que há dentro de nós. A experiência divina de transcendência causada pelas percepções sensoriais. Alguns encontram a sua flor na música, outros na arte, outros o conhecimento. Há tantas flores. Há tantos deuses. Há um deus pra cada pessoa. Um deus em cada um de nós. Um deus humano.

Deus é humano.
Deus é a humanidade inata em cada um de nós.
Nós somos nossos próprios deuses.
Nós somos deus.