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domingo, 25 de setembro de 2011

O último tango da noite - III

Parte três do texto escrito em parceria de Verônica Hiller, do girl sets fire.








       Então eu deixei a porta se fechar. A claridade daquele apartamento ainda exalava de mim. Desci as escadas correndo, acreditando que a rapidez com que eu fugia me convenceria de que assim era o certo a se fazer.
       Eu estava com falta de ar. Mas mesmo assim acendi um cigarro. Senti a garganta arranhar na primeira tragada. Eu não sei se a falta de ar é por ter descido as escadas rápido demais, não sei se é por causa dos cigarros, ter rabiscado coisas na parede, pegado todas as minhas coisas e sumido de lá feito um ladrão. Não. Só por causa dos cigarros mesmo. Mesmo que ela tenha sugado todo o ar que até o meu eu mais saudável teria na noite passada. Mas eu não iria me deixar acreditar nisso. Eu fiz o que fiz por que era necessário. Eu não quis tudo aquilo. Ou, pensando melhor, talvez eu até fosse um ladrão. Ela provavelmente concordaria. Ladrão de paz. Tinha lá uma frase, não tinha ?! Qualquer coisa sobre covardia e amor.
        E agora cá estou eu. Com uma mala de roupas nas costas, um cigarro na mão, e os arranhões na pele. Merda, a minha blusa está com o cheiro dela. Quem sabe logo logo esse cheiro não saia de mim e eu volte ao velho cheiro dos cigarros. Eu fui embora feito um covarde, de fato. Eu ainda tenho o vermelho nas minhas mãos, o teu vermelho nos meus lábios. Eu ainda tenho as tuas risadas fazendo cócegas nos meus ouvidos, teu olhar queimando a minha carne. Sem esquecer dos gemidos. O Carlos Gardel ecoando pelas paredes enquanto competíamos entre qualquer frase sarcástica e os goles da tua cachaça. E depois o vinho. E depois os beijos. E depois teu corpo.
        O som da tua voz que começou apenas com um 'me dá um cigarro', no bar. Terminou em gritos. A canção alta daquele lugar tornou-se o tango do toca discos. O toque leve das tuas mãos no meu ombro quando me cumprimentou, algumas conversas, e no fim acabamos na sua casa. Eu senti a tua pele na minha, a lascívia que estivera dormente no começo da noite tornara-se, depois, o feu amargo que preenchera nossos corpos. As palavras viscosas que nós trocávamos, falávamos de coisas banais, falávamos da alma, falávamos de sexo e de desejo. E foi assim que nós acabamos, submersos até o pescoço no pântano do nosso tesão. Estamos enlameados da nossa sujeira, recobertos pela camada escura que nos cobriu ontem à noite. Os beijos, os arranhões, os gritos. E agora tudo isso cheira à coisas mortas para mim. Eu estou completamente sujo de lama. Toda essa tua lama. Morta. Que já não tem volta: era o fim quando eu bati tua porta que guardava todo aquele vazio luminoso. Todo o teu vazio luminoso que acariciou as arestas mais moribundas da minha alma. E agora o amargo da ressaca, a fumaça opaca, a falta do teu calor em mim. A rua parada, vazia, as calçadas molhadas, e eu vagando feito um idiota, decidido a te dar as costas mas não conseguindo nem te tirar da cabeça.
       As lembranças de ontem não me deixam esquecer você. Lembranças estas corroídas pelo álcool, flashes de ontem ainda me vêm à mente. Tu me disse que era loucura sairmos assim. Eu te disse que eu precisava. Nós quebramos as taças de tão inebriados que estávamos. E nos beijamos como se nossas vidas dependessem daquilo. Teus lábios encarnados na minha pele. As mordidas que mesclavam dor e prazer. Eu te quis fazer mulher naquela noite. E na pequena nuvem de pelos negros do teu sexo eu fiz meu ninho. Cobri de beijos a tua casa. Senti você esquentando com os meus carinhos e derretendo-se na minha boca. Vi gradativamente teus gemidos transformarem-se em gritos, tua vergonha transformar-se em desejo, tua sanidade transformar-se em lascívia. Ah! Eu tive teu corpo a noite inteira. Desfrutei-o como se lá fosse a minha morada. Te carreguei nas minhas mãos como quem conduz um par pela dança. E nós com o corpo melado de suor, os beijos salgados que escorregavam pela pele, perdemo-nos dentro de nós. E com todas as nossas forças completamente drenadas, os músculos doídos, a pele marcada, nós deitamos. O colosso de pedra jazia inerte com a ninfa de cabelos negros enredada em seus braços. E nós dormimos. Mas eu, covarde, fugi.
E eu, agora, só conseguia rir. Toda a desgraça escorrendo da minha gargalhada. Meu deus, eu a tive inteira nas mãos. Noite passada ela foi minha. E eu só simplesmente fugi. Com medo de toda a grandiosidade que éramos nós dois juntos. Eu fui medroso, eu fui fraco. Eu não quis me envolver, não quis me entregar, e por isso eu fugi.

       Fugindo, lembrando. E toda a porra da falta de ar. Talvez fosse só ressaca mesmo. Talvez um banho quente e tudo isso passe. Pra expulsar toda a tua presença que ainda gritava em mim. Pra apagar todo o teu cheiro da minha vida e só ficar a fumaça dos meus cigarros. Só dos meus cigarros. 

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