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sábado, 26 de novembro de 2011

Amor e Ultraviolência.

        E eu quis destruir tudo aquilo que era belo. Esmigalhar toda a beleza que eu encontrava pelo meu caminho. Das flores eu fiz uma mancha vermelha na parede branca quando elas foram arremessadas com vaso e tudo. A supernova de cacos e água que espalhou-se no ar e como que por um segundo fora capaz de condensar toda a luz refletida em um espectro flutuante de brilho. O som tilintante dos cacos caindo no assoalho de madeira mitigou-se no som da minha voz;

        - VAGABUNDA! - 

        Inércia: Tendência de um corpo permanecer em um estado de movimento constante.

        Ela me olhava. E eu via medo em seus olhos. As lágrimas eram como os cacos de vidro no chão, o brilho perdido que nunca mais voltaria ao seu estado original. As faces vermelhas tinham o mesmo carmesim dos lábios. E o choro. O choro. Aquilo me doía. Como se cada lamúria fosse a nota de um violino, os arpejos  tocavam fundo nas cordas do meu coração, e me doíam.

        A velocidade do som no ar é de 340m/s

        Mas eu não conseguia parar.
        Eu queria destruir tudo aquilo que era belo. Enquanto não visse o último vaso despedaçado, a última fotografia rasgada, os móveis ainda de pé, meu corpo não iria descansar. 

        - Parece que eu não te conheço mais. - E lá ía-se um vaso de porcelana à parede.
        - Você mudou tanto. - A cômoda virada, as gavetas no chão. As roupas espalhadas.
        - Você vai ficar aí, chorando? - Estas fotos foram do nosso casamento. Agora estão sendo levadas pelas lufadas de vento da janela.
        - Você é fraca. - Defenestrar. É essa a palavra.

        A aceleração da gravidade na Terra é de 9,8m/s²

        Não que eu quisesse parar. Não que eu fosse parar enquanto não tivesse terminado. Mas isso era um pesadelo.
        Isso era um pesadelo?
        E por um segundo eu fechei os olhos, esperando que quando eu os abrisse novamente o dia seria outro. Eu não teria chego em casa. Não teria encontrado mais ninguém no apartamento. Não, não seria só um amigo. As roupas no chão não seriam dela. Aquele amigo não seria gay. Aquela calcinha não era sua. Os preservativos nunca foram usados.

        - Que porra de música é essa? - 
        - De onde vem? - 
        - Porra, porque você não me responde? - 

        Tenacidade: A energia mecânica necessária para levar um material à ruptura.

        O rádio estava ligado. Mas nenhuma estação sintonizada. O som fantasmagórico misturava-se com as lágrimas acuadas encolhidas no sofá. Um soco e elas parariam. 

        No primeiro, uma música começou a tocar.
        No primeiro, o sangue já começou a fluir. 

        Aquela música fora a música do nosso casamento. A fita já deve estar espalhada em pedaços pelo chão. O piano tocava a sua cadência, ela abraçada ao pai acompanhava o ritmo nas passadas. Tudo perfeitamente coordenado. O tapete vermelho, o vestido branco. E todas as coisas que foram construídas na nossa vida.
        O sangue espirrou em uma cascata pelo nariz. Aquele rosto tão belo que outrora eu tanto beijara, agora trazia as marcas das minhas mãos, o nariz torto no primeiro golpe. O rosto branco pintado de vermelho. E todas as horas que eu passara olhando para aquela face.

        Um soco não fora o bastante. 
        Dez anos não foram o bastante.

        O pescoço humano só aguenta ser virado até certo ângulo, depois disso, o cérebro apaga.

        No segundo, o rádio despedaçou-se. Mas eu não parei de ouvir a música. Na minha vida, eu nunca tivera deixado de ouvi-la. Juntos nós a ouvimos tantas vezes. Nas viagens, nas noites partilhando a cama, nas tardes cozinhando. Ela era uma companhia constante na minha vida, ela, e a música. 
        No segundo, ela desmaiou. Ela sempre fora de constituição frágil. E lá jazia inerte nas minhas mãos inundadas de sangue. A boneca de cabelos pretos parecia ser preenchida com pano, molenga, suscetível à quaisquer mudanças que eu pudesse causá-la. 

        Eu tenho que dar um fim nisso. Toda lembrança estava sendo levada com as fotos pelo vento. Toda vida esvaindo-se na minha mão. Até hoje, alguns ousam falar que o que eu fiz não fora por amor. Mas se não fosse por amor seria pelo que?


        Não há justificativas.

        Ela me traiu.

        Se você a amasse nunca teria encostado um dedo sequer nela.

        Na nossa cama. Na minha casa.

        Você destruiu tudo o que você tinha. Destruiu sua casa, seus móveis, sua esposa, sua vida.

        Quisera eu não ter tido aquele final.

        Quem causou ele foi você.

        Eu sempre a amei.

        Isso não é amor.


        No terceiro eu já nem pensava mais, era meu corpo quem agia por mim e meu cérebro atônito apenas assistia tudo o que eu fazia. No quarto eu ouvi barulho de ossos quebrando. No quinto, eu senti as lágrimas e o remorso vindo peito afora. No sexto eu sabia que precisava dar um fim naquilo.

        O mandamento condena o assasínio. A ira é um dos sete pecados. 

        Não há deus que vá me salvar. A banheira ainda está cheia de água. E enquanto eu a arrasto, o sangue forma um rastro no carpete. Eu jogo-a lá dentro, fecho os olhos e deito no chão gelado do banheiro.

        A respiração é controlada pelo sistema nervoso autônomo. Depois de por volta de dois sem respirar o corpo tende a instintivamente buscar qualquer forma de respirar.

        A água colorida pelo sangue espalhou-se no ar enquanto ela levantada ofegante. Como um sonho eu ouvia os sons, via as imagens mas simplesmente não tinha força para mover-me. Meus músculos doíam exaustos. Minha alma já não queria mais lutar. O som da barra de pendurar toalhas que fora arrancada da parede sendo levantado do chão reverberou nas paredes de azulejo. Ela apanhou a barra, e debilmente dirigiu-se à mim. Estava coberta de sangue. O vermelho diluído na água.
        Ela ainda tinha forças.
        O primeiro golpe fora o suficiente para causar-me dor.
        No segundo, meus ossos do crânio quebraram-se.
        O terceiro, o quarto, e o quinto, foram seguidos. O sangue espirrou na porcelana branca criando pequenos pontos espalhados na imensidão da alvura asséptica.
        No sexto, eu já não respirava mais.

        Batidas na porta. Chutes. A polícia entra gritando e um dos vizinhos diz:
        - Nós ouvimos o que aconteceu. -
        Olham para mim e perguntam:
        - Você está bem? -
       Vacilantes dizem:
       - Ele está. . . morto?   

sábado, 12 de novembro de 2011

Sufoco.

Tente respirar. E você vai ver que o ar do lugar não é suficiente.
Bata nas paredes e ouça o som metálico da sua voz caindo pelo fosso.
Veja a imagem desfocada dos seus olhos vermelhos no espelho.

De manhã, você fez a barba, escovou os dentes, e veio.

Você está preso entre o décimo, e o décimo primeiro andar.

Se não fosse tão baixo, você tentaria abrir as portas. Você sabe que se você forçar, e tentar sair pelo vão, o elevador pode descer e você vai ser cortado pelo meio. Feito aqueles filmes de terror.

Tente gritar. E você vai descobrir que não há mais ninguém no prédio.
O aço escovado reflete todo o seu desespero. E você está enclausurado na cápsula metálica.
Você liga o celular e lembra daquela aula do ensino médio: "elevadores criam uma blindagem eletrostática."
Você lembra disso, mas não lembra da merda do aniversário da sua mãe.
Se essas aulas tivessem servido para algo você não estaria aqui, agora.

Tudo o que você fez durante toda a sua vida encaminhou você para esse momento.

Continue batendo nas paredes, amasse o metal. Machuque os nós dos dedos. Pinte o prateado de vermelho.
Você não vai à lugar algum.
Cinco segundos, e você teria ido pelo elevador de serviço.
Tudo o que você fez, te trouxe pra cá.

Chore. Esbraveje. Aproveite para derramar suas lágrimas enquanto ninguém vem buscar você. Você está sozinho.
Você sempre esteve sozinho.
Você não tem mulher, não tem filhos. Ela te largou.
"Eu vou fazer um aborto, quem sabe eu vá morar com a minha mãe. Eu só não quero te ver mais."
Quem sabe se as aulas do ensino médio não tivessem te levado pra outro lugar e ela também não estaria lá.

Viva para esse seu emprego de merda. Seu apartamento alugado. Volte de metrô para casa.
"Eu sou o lixo orgânico da sociedade."
Largue esse livro. Ele não vai fazer o tempo passar mais rápido. Quem sabe o tempo nunca mais passe pra você. E você fique preso nessa caixa de metal.
Quem sabe o zelador encontre seu corpo sufocado pela manhã.
"Olha senhor policial, ele sempre é o último a sair. Eu acho que ele ficou preso no elevador. Entrou em pânico e se 'engasgou' com a gravata."

Tente gritar mais uma vez. E ouça o eco dos anos perdidos.
Quem sabe, se você tivesse passado naquela faculdade, você não estaria aqui.
Você pensa na sua vida. Pensa na comida na geladeira. Você sabe que ninguém vai tirar ela de lá. Pense nas baratas. Nos ratos nos armários. Pense nos seus medos.
Você pegou uma canetinha da pasta, e está desenhando nas paredes. Você queria faculdade de arte, não queria? Seus pais não colocavam fé no seu futuro.
E você acabou sem futuro. Em um emprego de escritório, que paga mal, e te humilha.

Acenda um cigarro.
Você não tem muito mais tempo de vida. Pra que se importar?
Nunca nem você mesmo se importou.
Nunca ninguém se importou.
Você durante toda a sua vida nunca foi cobrado. Só tinha que fazer a sua obrigação, nada mais.
Você não tem méritos. Você nunca foi o primeiro a ser escolhido na educação física. Nunca foi o mais esperto da faculdade. Nem tinha a namorada mais bonita, ou o carro do ano. Nunca teve o melhor lugar para morar.
Todos nós fomos criados para sermos melhores, criados para nos acharmos únicos em alguma coisa.
"Você é o lixo orgânico da sociedade."

As cinzas grudam no suor do seu peito. A camisa está aberta, o cigarro pende frouxo na boca.
Você relaxa. Adormece. Espera que aquilo passe logo.
Afinal, você vai ser achado de manhã. Jeito ou outro, mas vai.

Sinta a brasa arder no seu peito. Sinta o cheiro do poliéster queimando.
Sua camisa está pegando fogo. Você a tira rapidamente e a joga no chão.
Você se queimou um pouco. O peito e os braços estão ardendo.
O elevador está tomado pela fumaça cinza. E o ar se torna ainda mais difícil de respirar.

Você acorda, e se lembra onde está. Vê a camisa consumida pelas chamas no chão. Seus braços ardem.
Você encosta-os na parede de metal.
Isso é sangue nas minhas mãos?
O alumínio gelado alivia a dor, mas não cura.
Toda sua vida foi assim. Alivia, mas não cura. A dor acumulou-se nos seus poros durante os anos, algumas noites bem dormidas aliviavam as brigas com a ex-esposa. Ganhe seu salário no final do mês, e ele aliviará a culpa da faculdade desperdiçada. Veja a vida de um filho escorrer pelas mãos, foque apenas no trabalho, ocupe a sua mente com outras coisas. Ela foi embora, agora você tem o apartamento só para você.

Alivia, mas não cura.

Chorar não vai fazer a dor passar. Não vai fazer você esquecer as lembranças. Você não tem ninguém para te ouvir. Você está sozinho. Na vida. No prédio.

Você acordou, e achou que ia ter um dia bom. Comprou um vinho para tomar de noite, uma massa para o jantar. Eles ficaram no carro.
Será que alguém vai se lembrar de retirá-los?
Baratas. Vinagre.

Você pensa a quanto tempo está lá. Tem certeza de que já se passaram mais de horas.
Você tenta forçar as portas. E se depara com quarenta centímetros de laje bem na altura do seu peito. Você não vai conseguir forçar a porta de cima, ela está muito alta. Tampouco a de baixo, se o os freios do elevador escorregarem, você morre.
Pelo menos a porta aberta cria uma ventilação melhor.
O cheiro de queimado continua insuportável.

Alivia, mas não cura.

Foque no trabalho. Apanhe os papéis da pasta e leia-os. Suas mãos estão sujas de fuligem e mancham os papéis.
Você tem que entregar este relatório amanhã para o seu chefe.
O tempo não vai passar.

Chute as paredes. Você está com raiva. Veja o metal se curvando sob a sua força.
Ouça o eco das batidas vindas pelo fosso.
Você é esse eco. Tudo o que você viveu até agora, serviu para te fazer terminar nesse último segundo de som.
Você está resignado. Acostumou-se com a sua vida-de-inércia. Você só tem o que tem, porque é assim que as coisas são. Você nunca quis mais, nunca quis melhorar. Você nunca esteve acima da média. Você é o eco de todas as suas decisões anteriores.

Isso tem que acabar. O elevador. A sua vida.
Você calmamente empurra para cima a cobertura de plástico do elevado, amarra a gravata na armação de aço. Apoiado nas laterais, você se ergue, e a passa pelo pescoço.
Tudo o que você fez, te levou até aqui.
A queda não é suficientemente alta para quebrar o seu pescoço.
O ar ainda tem cheiro de queimado. Está difícil você respirar por aqui.
Uma pessoa normal leva de cinco a quinze minutos para morrer asfixiada.

E você lembra das aulas. Lembra do passado. Lembra de tudo aquilo que você tem vergonha. Lembra do filho que você não teve. Lembra da esposa que lhe deixou.
Você tem dor. Você se debate pendurado. Seus chutes batem no espelho, que se quebra em milhares de cacos coloridos.
Você tenta tirar a gravata do seu pescoço, sente suas próprias unhas lacerando a sua carne. Sente as veias dilatadas no pescoço sangrando.

A gravata se rasga, e você cai no chão. O boneco inerte cai sob os cacos de vidro e se rasga inteiro. O sangue se mistura com os cacos de espelho. As pupilas frias refletem no mar de vidro pintado de vermelho.
Agora já é tarde demais.

Você sabe que ninguém vai buscar você. A comida vai ficar esquecida na geladeira.
Ninguém vai no seu velório. 
Todas as suas memórias, todo o seu passado, se esvaindo no último suspiro de vida.
Se a gravata tivesse rasgado cinco segundos antes, você teria sobrevivido.
Tudo o que você fez, te levou até aqui.
De manhã vão achar você. De um jeito ou de outro.

"Olha senhor policial, ele sempre é o último a sair. Eu acho que ele ficou preso no elevador. Entrou em pânico e se 'engasgou' com a gravata."
"Mas não tem botão de emergência nesse elevador?"
"Tem. Mas ele não viu. Por isso que ele deve ter entrado em pânico."

Você nunca foi acima da média.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Notcturnes Opus 9

        "Te cobri de beijos, escorreguei por toda tua pele com meus lábios, até terminar na tua vergonha com meus carinhos."       
Quisera eu escrever uma sinfonia para você.
        "Te entreguei nas mãos todos os meus escudos. Joguei pro alto toda a minha arrogância."
Pra mim, a música é a mais bela expressão dos sentimentos humanos.
        "Sorri quando lembrei das suas rimas."
Alguns acordes, alguns arpejos, e uma melodia. Que arrepiam e tiram o ar.
        "Teus lábios me sugavam qualquer respiração, tuas mãos desencadeavam uma tempestade elétrica de arrepios na minha pele."
E pra compensar meus dotes musicais, eu fiz a minha sintonia de palavras.
        "Assoviei uma canção baixinho até você adormecer nos meus braços. Quente, calma, tão frágil."
Na página pautada, eu manchei os versos com tinta escarlate. Na tua pele branca, eu borrei o teu batom vermelho.
        "Teu abraço que me parece carrossel, me leva pra brincar, me faz perder toda a compostura e no fim, eu apenas sorrio."
Nas partitura, eu escrevi alguns versos. Compasso-ternário. Estrofes-de-ternura.
        "Não há nada a fazer, senão me entregar. Senão me perder no emaranhado de cabelos-pretos-enrolados."
A melodia, no fim, só queria dizer: Eu te amo.
        "Não há nada a fazer, senão cantarolar Chopin até enquanto você dorme nos meus braços."
A minha sinfonia, os meus versos, meus parágrafos, são todos para você. 


Pra você, minha maestrina.