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sábado, 24 de setembro de 2011

Folhas secas.


       Ela nunca tivera visto aquela tatuagem dele. Surpreendeu-se quando viu ele sem camisa. Eles estavam sentados à beira da piscina, o verão começara a alguns dias, e essa era a primeira vez que eles tomavam banho juntos. A tatuagem era de uma grande folha de bordo, na parte superior direita das costas, quase no ombro, era grande, apenas a silhueta preenchida de preto.
      - “Que legal essa sua tatuagem” - Disse ela apontando para o ombro dele. Ele virou-se, encarou-a nos olhos e pulou na água. Ela rindo, pulou logo atrás. Mergulharam juntos. - “Por que é que você tem essa tatuagem?” - Disse ela, após retomarem a superfície.
      Ele novamente não respondeu-a, mergulhou, e ao retornar disse: - “Minha Mãe.” - Virou e deixou-a examinar mais de perto a tatuagem.
      Ela, tocando a tatuagem com a ponta dos dedos molhados perguntou: - “Você nunca me contou dela. Nem da tatuagem e nem da sua Mãe. Eu sei que todas as suas tatuagens tem significados importantes na sua vida. Os koi nos braços, a flor-de-liz, o coração no seu peito. Mas essa, eu nunca soube.” - Ele virou-se, deu um beijo nela, e subiu até a borda da piscina. Sentou-se com os pés tocando a água e disse:
      - “Essa é uma das poucas lembranças que eu quis ter dela.” -
      - “E por que é que você não quis guardar outras lembranças? Ela foi ruim pra você?” - 
      - “Muito pelo contrário. Ela foi ótima. É que essas lembranças são tristes demais pra mim.” - 
      - “E por que elas te trazem tristeza?” -
      - “Lembrar de alguém que já se foi não traz felicidade alguma. Abrir o baú da memória e chafurdar em memórias de anos sofridos.” - 
      - “Ela te fez sofrer?” - 
      - “Não, eu sofri com ela. Eu sofri por ela.” - 
      - “Ela sofreu tanto assim? O que a fez sofrer tanto?” -
      À esta altura eles já estavam fora da piscina, ele recostado em uma estiradeira olhando para o alto. Ela sentada diretamente à frente dele, absorta olhando ele contar  aquela história. Ela conhecia-o faziam três anos, e durante todo esse tempo ele nunca falara da própria mãe. Há tempos ela quisera saber disso e ele mostrara-se evasivo. Talvez essa fosse a hora, talvez ela adquirira suficientemente a confiança dele, talvez agora ela saberia toda a história da dita tatuagem cujo significado lhe intrigava.
      - “É, ela sofreu. Desde sempre a vida lhe surrou na cara. Até o dia em que a vida lhe nocauteou. Mas não, não foi um nocaute rápido. Foram lentos e cruéis seis anos.” - 
      - “Seis anos de que?” - 
      - “De doença.” - 
      - “Começou já quando ela era jovem, e no final da vida dela foi aterrador, devastador, lento e torturante. Ela arrastava-se em uma sobrevida desgraçada e dependente. Já nos seus oito anos ela apresentou os primeiros sintomas, musculatura fraca, pouca resistência óssea que culminava em ossos facilmente fraturados. Ainda me lembro de todas as histórias que ela me contava, de como ela vivera a sua infância, de como ela fora feliz. Ainda lembro-me das nossas conversas sentados à mesa, tomando café, eu absorto assistindo ela derramar suas memórias sobre mim. Ela sempre me falava de como fora o lugar em que ela morou quando era criança. Um bairro industrial, ela morava perto de uma fábrica que processava mate e perto de uma outra de fósforos. Ela sempre dizia que o cheiro de lá era algo peculiar, o enxofre e o mate subiam ao ar todas as manhãs, funcionavam como um despertador. No final da tarde o céu adquiria uma coloração laranja devido às chaminés das fábricas. Ela contava-me que as ruas que hoje são um caos de carros eram calmas ruas de pedras, onde ela brincava de bola com as outras crianças da rua. Onde haviam casas da metade do século XX hoje existem postos de gasolina, prédios comerciais, estacionamentos. O prédio que ela morou fora construído na década de quarenta. Seu avô morara naquele prédio, ela quando jovem morou naquele prédio, hoje eu moro lá. O prédio é de três andares, foi perfeitamente construído, suas sacadas possibilitam a vista quase integral da rua. Ela sempre falou dessa vista, a rua cercada por grandes Bordos, quase centenários, que davam sombra à rua. No outono essa centena de árvores perdia as suas folhas, o chão virava um grande tapete vermelho de folhas mortas e quebradiças. É lindo de se ver.” - Ele contou tudo isso com extrema naturalidade, as palavras fluiam feito cascata e ela assistia a tudo como uma criança que é hipnotizada pelas fantásticas coisas da tv.
      - “Eu me lembro de quando você me levou lá, na sacada nós tomamos café e fumamos alguns cigarros enquanto olhávamos os carros passarem.” - 
      Ele retomou a sua história como se não tivesse ouvido o que ela disse, estava tão concentrado nas suas próprias memórias que não se importava com o que ela dizia. - “Ela contou-me da primeira vez que a sua doença a deixou de cama. Ela fora ao teatro com seu pai, meu avô, e caíra de uns pequenos degraus, seus óssos frágeis não aguentaram a queda e facilmente se partiram. Ela ficou algumas semanas sem poder andar, ficava de cama a maioria do tempo, até que suas pernas adquirissem resistência novamente para ela poder caminhar. Eu me lembro desse teatro, quando eu era criança ela me levou lá para ver algumas peças, Alice, Gato de Botas, Inferno de Dante, Anjo negro,e algumas tragédias gregas cujo nome não me vem à mente. Eu não entendia o que todas aquelas pessoas faziam lá, até mesmo nas peças infantis, mas eu simplesmente ficava deslumbrado com todas as luzes, as roupas, as máscaras. Ficava extasiado com a beleza que era aquilo tudo. Ela dizia-me que embora eu não entendesse eu me lembraria de tudo aquilo um dia. Lembro-me dos acentos de estofado vermelho, do palco de madeira, das cortinas de tecido pesado, do fosso da orquestra. Aquilo tudo era simplesmente lindo, a beleza escondia-se em cada entalhe, cada detalhe das paredes, cada palavra proferida pelos atores. Cada minucia entalhada nas cores que prendia o olhar de todos os espectadores. Depois do teatro veio a biblioteca, ela levava-me lá pelas manhãs. A caminhada não era das mais longas.  Ela levava-me à seção infantil, e eu perdia-me lá por horas, revirando as estantes. Sentado em almofadas a manhã toda eu lia dezenas de volumes. O tempo foi passando e até a época em que a caminhada eu já fazia sozinho, ela não acompanhava-me mais. Além de ler os livros lá, eu trazia cada dia alguns livros para ler em casa. Ela chamava-me de ‘Pequena traça de livros’. Eis que no final dos seus dias, quem tornara-se a traça de livros fora ela. Seus músculos perdiam cada vez mais as forças, ela ficava a maior parte do dia deitada na cama. Eu trazia-lhe livros de todos os tipos, qualquer um que eu pudesse encontrar eu lhe trazia. Ela lia feito louca, passava horas e horas deitada lendo, até adormecer com o livro nas mãos. Até hoje eu tenho essa pequena coleção de livros que eu lhe dei.” -
      - “Tá explicada toda essa cultura.” - Disse ela em tom de brincadeira. Ele sem perceber o que ela disse continuou:
      - “Da nossa janela nós víamos um bar. Os letreiros vermelhos apareciam de noite através das cortinas. O chão preto e branco tinha um ar retrô. A fumaça de cigarros baratos subia em direção às luminárias baixas em cima das mesas de sinuca. Garotas em vestidos curtos e caras de topetes brilhantes vinham dançar juntos o Blues agitado. Minha mãe fora uma dessas garotas. Eu ainda tenho uma foto dela de vestido vermelho, saltos altos, e pernas de dar inveja a qualquer garota. Grandes olhos cor-de-esmeralda hipnotizavam qualquer um que olhasse-a. Era irresistível. Lá, ela conheceu meu pai. Em meio à cartas de baralho, cerveja, banheiros sujos eles conseguiram se envolver em um romance sórdido demais. Era brutalmente carnal, sexista e lascivo. E descuidado também. Ao descobrir que minha mãe estava grávida ele rapidamente saiu da cidade. Sem telefonemas, sem cartas, sem fotos. Sem lembrança alguma. O canalha simplesmente desapareceu feito mágica. Ela sofrendo foi pedir ajuda à mãe, que cruelmente a rejeitou. ‘E eu lá vou criar neto bastardo? Filho de mãe solteira?’. E novamente ela viu-se abandonada e despejada à sua própria sorte. Alguns meses depois dessas palavras cáusticas a minha avó faleceu, deixando de herança o apartamento da Rua-dos-Bordos. Minha mãe foi para lá, grávida e com pouco dinheiro. Nos meses seguintes ela teve de se virar sozinha, fazendo trabalhos pequenos. Vivendo de forma modesta. O final da gravidez foi difícil, ela já não tinha mais força nas pernas, sair de casa era cada vez mais difícil. Ela pensou em desistir, mas também pensou que seria egoísmo e crueldade acabar com uma vida que não tem direito algum de lutar para sobreviver. Após meu nascimento ela conseguiu estabelecer-se financeiramente. Nos meus primeiros anos de vida nós não vivíamos no luxo. Tínhamos o necessário. Ela decidiu não me criar no supérfluo, nada de luxo, nada de mimos. Conforme eu crescia ela investia mais e mais na minha educação. Dizia-me que a cultura e o conhecimento era algo que nunca poderiam me tirar. Comprava-me livros. Víamos filmes, peças de teatros, concertos. Éramos felizes nesse nosso companheirismo. Um era tudo que o outro tinha. Eu cresci assim nesse conto de fadas até meus doze anos, até o dia que a vida decidiu que era boa demais. O gelo-fino em que minha mãe vivia quebrou-se. Ela que, durante sua vida adulta, nunca tivera problemas mais sérios com sua doença começou a ter um derradeiro fim, definhando lentamente nos seis anos seguintes. No começo, eram apenas fraquezas e dores leves. Depois era insuportável, ela lutou por não conseguir mais mover os músculos da perna. Perdia a força à cada semana. Primeiro vieram as muletas, depois a cadeira de rodas. Nós tentamos levar a vida normalmente, mas era impossível, simplesmente não dá pra ficar bem quando se tem tamanho problema. Ela foi orgulhosa e resistente. Nos três anos seguintes nós vivemos em adaptação, cada dia a doença avançava mais. Cada vez nós tentávamos criar um novo jeito de dribla-la. Ela já perdera os olhos vívidos, eles tornaram-se opacos, reflexo do sofrimento de uma vida perdida. Depois, ela começou a mostrar claramente sinais de desistência. Os médicos não conseguiam fazer nada, simplesmente aliviar-lhe a dor. Aí foi que o vício veio, ela começou fumando alguns cigarros para ver se a dor passava. No final ela fumava o dia todo, o cheiro no quarto tornara-se insuportável. O vício era para fazê-la esquecer um pouco do sofrimento, não passava de uma fuga. Com cinco anos do início do agravo a doença chegara em um estágio crítico, ela já perdera completamente o movimento das pernas. Passava o dia todo na cama. Ela passava o dia todo tomando café e fumando. Lia livros por não ter mais o que fazer. Via filmes quando não conseguia pensar de cansaço. Eu costumava sentar com ela para conversar e olhar os carros passando na rua. Com a chegada do outono ela já perdera completamente suas forças, os médicos a sedavam na maior parte do dia. Ela já havia perdido o controle, tentou o suicídio com cortes nos pulsos.” -
     Ela esboçava algumas lágrimas, olhos vermelhos, cenho franzido e lábios crispados. Contraía-se contra o choro involuntário.
      - “Nas suas últimas semanas, enquanto ela olhava para a rua coberta de folhas vermelhas que caíram no outono ela disse-me: ‘Sabe filho, no final de tudo a dor não é nada tão diferente do outono. O outono vem, derruba todas as folhas e depois passa e todo mundo esquece. A dor vem, te derruba, te destrói mas no final você esquece dela, acostuma-se com ela. E depois que tudo acaba só sobram as folhas secas esmagadas pelo chão. Só sobra você escurrassado e destruído.’ Ela havia perdido toda a sua fé, toda a sua esperança. Havia conformado-se com a morte, com o esquecimento. Eis que um dia que eu saio eu chego e a encontro em absoluto silêncio. Um silêncio que nunca mais iria ser quebrado. Em meio a cinzeiros, livros jogados e um filme esquecido na tv ela havia perdido completamente as suas forças. Os médicos disseram-me que seus músculos do tórax já não conseguiam mais fazer o trabalho corretamente. Respirar ficava cada vez mais difícil, até a hora em que ficou impossível. Ela morreu cruelmente, lentamente asfixiada na própria impotência de não conseguir mover-se tamanha era a degeneração muscular. O velório não fora cerimonioso, poucas flores e pouca gente. O triste não foi a despedida, nós ficamos tão desorientados com o choque que mal temos noção do que acontece. O cruel é a vida seguinte, ver que todos os dias ela já não está mais lá pra ler com você. Que você não vai mais sentar-se na cama e ouvir as suas histórias. Eu sinto falta do cheiro de cigarros no quarto. Era como se eu ainda tivesse a presença dela lá enquanto seu cheiro permanecesse. Eu ainda sento na cozinha com o café esperando que ela venha sentar-se a mesa para nós conversarmos. E talvez eu continue a fazer isso todos os dias só para poder sentir sua constante presença. E de fato no final só ficaram as folhas secas, as lembranças esmagadas pela dor que nós não vamos nunca mais esquecer. Ela tornou-se a minha folha seca, a centelha de vida que cai da árvore, fica esquecida no chão, seca, definha, é estraçalhada, despedaçada. Eis que na minha pele eu tenho a minha folha seca, a minha lembrança, eis que eu ainda a tenho em mim.” - 
      Ele com um pulo rápido levantou e foi para a piscina, talvez fosse para disfarças as lágrimas, ou se não para clarear a mente. Ela sentada tentava absorver os detalhes de tudo que ouvira, com o olhar perdido e a mente fervilhado ela virou-se e olhou para a água. Viu a silhueta do rapaz distorcida pela água e decidiu pular atrás. - “Essa sua folha seca é muito mais que isso. São suas lembranças, suas dores, é toda a sua vida concentrada em alguns centímetros de tinta na sua pele. É a folha seca, que tornou-se a sua mãe, que jamais será esquecida.” - 

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