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segunda-feira, 14 de maio de 2012

Braseiro


Como fogo em palha, a centelha da lembrança deu início à um fogaréu.
        "Não sei bem quando foi que eu lembrei. O que eu achava que por muito tempo eu poderia esquecer. A nossa mente é uma coisa engraçada, nos prega algumas peças. Eu achei que podia expurgar todo sentimento que eu podia ter, simplesmente fechar meus olhos e tapar os ouvidos e fazer com que os ventos tempo soprassem as areias da lembrança e desfizessem as dunas da memória."
E o amargo da memória que começou assim, devagarinho foi trazendo a chama. E como todo incêndio, começou apenas com uma faísca.
        "Ela gostava de Van Gogh. Lembro que ela tinha uma reprodução de um quadro dele. Duas grandes botas pintadas em tons de marrom. A imagem pintada era algo banal, mas certamente perturbadora. O que duas botas estavam fazendo ali para serem pintadas? Por que estas botas me incomodavam tanto? Toda vez que eu entrava no quarto dela e via o quadro era como se eu tomasse um choque, e pouco a pouco fosse sendo consumido pela difusão das cores do quadro. A melancolia tomava conta, todos os sentimentos esvaíam-se e ficava apenas o medo. Sim, o medo. Aquele quadro me dava medo. Mas não medo da imagem, e sim medo das coisas que aquele quadro me fazia sentir."
E um dia, após voltar para cara ele tirou capacete, luvas, e jaqueta e jogou-os sobre o sofá. Sentou-se e tirou as botas. Mas ao jogá-las diante de si remeteu-o a imagem daquele quadro. Ali, as botas caídas, sem fazer nada mas dignas de serem notadas. Exatamente feito o quadro.
As lembranças reprimidas de outrora lentamente foram destiladas em ódio. Ódio por ter sido enganado, ódio por ter perdido meu tempo, ódio por ter amado. Ódio por não ter sido amado.
E esse ódio cresceu, era como se tudo o que ele sentisse fosse fumaça que nublasse a sua visão. Como se seus próprios sentimentos fossem ares tóxicos que lhe envenenavam. E seu peito estava cheio das brasas de raiva.
Toda a energia que fora guardada dentro de si estava agora saindo como uma explosão de palavras, lembranças, e lágrimas. Mas ele não se permitia chorar. As lágrimas queimavam rapidamente na superfície escaldante do orgulho.
        "Eu só preciso sair, pegar um ar fresco no rosto pra esquecer tudo mais uma vez."
E assim ele foi, calçou novamente as botas, vestiu a jaqueta, luvas e capacete. Subiu na moto e partiu. Não buscando algum destino, apenas seguindo os ventos, onde o braseiro em seu peito o levasse. Só pararia quando a gasolina acabasse, ou as chamas transformassem em cinza toda a dor.
O cavaleiro conduzia a besta de metal pelas estradas do norte da cidade. Os rugidos retumbavam nas paredes dos cânions, e na escuridão da noite via-se apenas a luz cortando as paredes de pedra.
Ele conduzia a moto cada vez mais rápido.
Mais rápido.
Mais rápido apenas para aplacar a dor, deixando as gotas baterem no seu rosto e confundirem-se com as lágrimas. Mas o vento fazia apenas aumentar as chamas. E o que ele sentia, conforme ele corria aumentava.
        "Não tinha que ter acabado como acabou. O cruel foi que ela jogava comigo. Ora dizia sentir, ora dizia não sentir. E na verdade eu era apenas um joguete. Uma distração até que, segundo as palavras dela, alguém melhor aparecesse. Será que ela sabe por onde eu estive? Será que um dia ele teve noção de tudo o que eu senti? É canalhice demais simplesmente sair assim como ela fez. Desleal. De todas as palavras que eu disse, todas as horas que eu passei destrinchando meu amor para ela eu simplesmente recebi indiferença. Melhor, não era nem indiferença. Ela só me dava a dúvida. Para ela era prazeroso ter alguém que lhe implorasse quaisquer migalhas de carinho. Ela gostava de ser cruel. Amor pra ela não era amar, mas apenas ser amada. E como um fetiche ela aproveitava-se da minha condição de apaixonado doentio apenas para satisfazer seus desejos sádicos. Ela gostava de me ver sofrer. Seu pequeno ego preferia alguém sofrendo por ela do que alguém a amando. Mas um dia ela simplesmente cansou. E assim, como quem chacoalha as migalhas da toalha para fora da janela ela despejou-me da sua vida. E eu fui. E o tempo passou. Eu achei que podia esquecer de tudo. Mas apenas as botas me fizeram lembrar."
Ele ia cada vez mais rápido. Passava velozmente entre os carros, ignorava-os. Estava tomado por fúria, cego feito um morcego guiava-se apenas pelo som das buzinas.
E o ódio que fervilhava dentro dele uma hora ia explodir. Todo o caldeirão de fel amargo que havia dentro dele havia entrado em ebulição. Aquilo precisava escapar. Ele respirava fumaça, seu peito estava cheio de calor. Aquilo tudo ia terminar em chamas.
E assim, ele queimou.

Os que viram a colisão dizem que ele bateu sozinho. Dirigia feito um alucinado na estrada e em uma das curvas simplesmente saiu pela tangente a atingiu direto o paredão de rochas.

Rapidamente consumido pelas chamas. Lentamente consumido pelo ódio.
"Será que ela sabe por onde eu estive?"

Um comentário:

  1. Tamanho o ódio que a gente perde a visão, perde os sentidos, perde a vida, mas não perde o maldito sentimento, não?

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