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sábado, 15 de outubro de 2011

Da sacada eu vi,

Continuação de "Minha vida em terceira pessoa.", da série isso não é amor.

        Eu vi as estrelas sumirem no no crepúsculo vespertino. O céu avermelhado engolia as luzes que vinham do infinito. Vi teu cigarro apagando-se aos poucos esquecido no beiral da sacada, o mármore manchado de marrom. 
        E tu só me encarava, com teus olhos de piano, o branco do olho intercalado com o verde da íris, com o negro da pupila. Talvez fosse pelo contraste que eu ficava hipnotizado, branco-verde-preto, tudo muito bem delineado com um contorno tão escuro quanto as pupilas. Ah, essa não-mistura de cor! Contornos que nunca se misturavam, só contrastavam entre si harmoniosamente. Era a ironia estampada nos teus olhos, a inconsistência da harmonia de cores intrínseca ao contraste. Eu podia simplesmente deixar toda aquela luz que refletia dos círculos-concêntricos-de-cor, tudo tão perfeito, tão colorido, tão hipnotizante. 
        Como que eu pude passar a noite toda de olhos fechados?
        O cigarro manchado de batom já fora levado pelo vento, e você nem se importou com as cinzas que manchavam o teu vestido. 
        "Nossa, teu topete está uma bagunça. Vem aqui, deixa eu arrumar." - Você me disse, chegando mais perto de mim. Passando a mão nos meus cabelos. E eu sei, que embora eu tivesse a noite toda colado à ti, cada toque teu ainda era eletrizante, um medo subia-me à barriga na menor iminência de contato.
        E você colocou as duas mãos no meu rosto, segurava-me como quem segura um bebê.
        "Pronto, agora você tá bonito." - E sorriu. O sorriso sincero destacava-se no rosto cansado. 
        E eu segurei tuas mãos juntas do meu rosto. Enlacei meus dedos nos teus e pressionei-os contra minha face. E tu só me olhava sorrindo. Eu vi a pele morena dos teus braços, o tom suave de madeira clara. E o pensamento "Pele-de-indiano" passou-me pela cabeça. Pele que tinha cor de especiarias. Marrom-vermelho-bordô-amarelo. Tinha cheiro de especiarias. O cheiro do desconhecido, cheiro mordaz de curiosidade, do inexplorado, tão pungente quanto o tempero mais ardido de todas as índias.
        Isso despertou as garras do animal mais feroz que há dentro de mim. O desejo vil de simplesmente te possuir. De passar meus braços envolta do teu corpo. Fazer-nos unir em um véu feito dos nossos beijos.
        Nossos olhos travavam um duelo. Nem eu, nem você, nos atrevíamos à desviar o olhar. Eu ainda segurava as tuas mãos.
        E outrora, nós passamos a noite juntos. Trocamos poucas palavras. Preferíamos falar em movimentos. Os corpos unidos, a tua pele suada encostava na minha. E eu, de olhos fechados. Nos poucos momentos em que eu estava perdido na inércia da música, eu abria os olhos. Na melancolia enredada nas guitarras de Radiohead que ecoavam de forma ensurdecedora através do salão do bar, eu vi os movimentos em preto e branco de todos lá dentro. A luz que piscava freneticamente criava uma descontinuidade nos movimentos, um segundo a pessoa movia-se parar uma direção, noutro a escuridão tomava conta do lugar, e no momento seguinte de claridade, na pequena fração visível a pessoa já saíra da trajetória prevista. Eu vi olhos cansados. Vi sorrisos. Vi peles brilhantes. Ouvi vozes, ouvi gritos. E naquele lugar onde todas os sentidos pareciam misturar-se nós não precisávamos falar nada, dizíamos coisas com os movimentos da nossa dança. Os corpos embalados pela batida frenética da música, tocavam-se, afastavam-se, abraçavam-se. Em um ritual primitivo de humanidade, que só nos fazia nossas próprias almas saírem de dentro de nós. Os olhos eram traídos pelas luzes, a música ensurdecia os ouvidos, e eu esbarrava em pessoas que eu sequer sabia quem era. Mas aquilo era fantástico. Eu me entreguei. E durante aquele frenesi, nós fomos um só. Dois seres unidos pela música.
        De volta à sacada, a imponência do teu olhar simplesmente desafiava-me. Tu sorria. Eu me perdia nas linhas dos teus olhos.
        Eu me aproximei do teu sorriso. Não tinha mais nada a fazer senão isto. Senão simplesmente te beijar. E concretizar a união que construiu-se durante toda a noite.
        Eu senti teus lábios com gosto de caramelo. Abracei tua cintura e te trouxe pra mim.
        Eu não ouvi sinos. E não vi estrelas.
        Eu só vi teus olhos vidrados nos meus.
        Teu batom vermelho manchado.
        "Que porra é essa?"
        E tu partiu. Simplesmente assim. Sem dizer teu nome, foi embora com os saltos vermelhos e a saia de pregas. Levou teus olhos e o meu coração.
        E eu ainda vou atrás de ti. V.

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