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quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O conto da carta.

        Ela ainda vestia as roupas negras que usara na missa de sétimo dia no dia anterior. Já faziam 8 dias.
        Acordou, trocou-se, colocou os óculos escuros e desceu o prédio para tomar um café. Notou um envelope branco na caixa de correio. Apanhou-o sem ver de onde era.
        Entrou pela porta de vidro do café, sentou-se nos fundos, em um sofá vermelho.
        - Eu quero um café, bem forte, sem açúcar. - Disse à garçonete.
        - Não tá meio escuro aqui pra você usar esses óculos não?
        - Não quero que vejam os ro. . . as olheiras.
        Remexeu na bolsa, procurava o envelope. Rasgou a lateral e puxou uma folha escrita à mão.

        É meu quinto dia aqui, eu sei que essa carta só chegará para você só na sexta ou no sábado.
        Depois que você foi embora, a polícia só chegou de manhã.
        Acho que você não ficou para ver o que aconteceu com ele.
        Foi você quem chamou a polícia? . . . 

        - Tá aqui seu café, moça.
        Ela tomou um gole, e queimou os lábios.
        Retirou os óculos para poder ler melhor. As marcas verdes sobre os olhos eram gritantemente visíveis, outrora eram roxas, pretas, sangue acumulado sob a pele que esvanecia com os dias. Mas o corte no supercílio ainda era visível.

        . . . Se você não tivesse pedido para eu parar de bater nele, nada disso haveria acontecido.
        Mas você se jogou sobre mim, com as unhas nos meus olhos.
        Eu só queria me vingar dele, e por um momento eu descarreguei a minha fúria sobre você, com os meus pulsos.
        Eu não sei como você se desvencilhou e correu de mim, eu estava cego de dor, preso em uma inércia de ódio.
        Não sei para onde você foi, só sei que depois que você saiu eu vi sangue e batom vermelho nas minhas mãos.
        E ao retornar ao quarto eu vi ele lá, semi consciente, com o rosto marcado de socos.
        Mesmo assim eu continuei.
        Minutos antes eu vira ele sobre você, roupas espalhadas, camisinhas usadas pelo chão.
        O que você esperava, que eu nunca iria descobrir?
        Eu sentia o cheiro de porra e suor nos nossos lençóis.
     
        Ela tinha lágrimas de sangue nos olhos, e um gosto amargo na boca.
        Ou seria só sangue seco do corte e o gosto do café?
        Engoliu em seco e continuou lendo.
     
        . . . Não sei quanto tempo ele continuou vivo. Só sei que foi bem antes de eu parar de bater nele.
        Eu não sei quem ele era. Sequer sei o nome dele.
        E durante horas eu esmurrei a carcaça inerte. O corpo com-e-sem vida transformou-se em um boneco de pano nas minhas mãos, não demonstrava reação alguma.
        Ouvi a polícia dizer que o crânio dele havia virado uma papa sob nossos lençóis . . .

        Ela sentiu uma ânsia de vômito. Mas continuou lendo.
     
        . . . Lembra daquela tua estatueta de gárgula?
        Eu fiz o barro virar pó contra os ossos da face dele.
        Suor, porra e uma lama barrenta misturada com o sangue. Tudo isso sob os nossos lençóis, debaixo do nosso teto.
        E depois que acabou, eu simplesmente deitei esperando o amanhecer chegar.
        Não acabou porque eu quis, porque eu não sentia mais vontade.
        Fora porque eu não tinha mais forças. Meus braços já não tinham mais forças para bater na massa úmida sobre a cama.
        Eu estava coberto de sangue. Estava exausto.
        E simplesmente deitei no chão. Olhei para o teto o resto da noite.
        Eu ouvia o sangue pingando, ouvia as moscas chegando.
        E pela manhã, a polícia chegou derrubando a porta. Primeiro bateram pacientemente, depois colocaram tudo abaixo.
        E ao verem a cena o nosso quarto, nem hesitaram. Deram-me socos, ponta-pés, algemaram-me.Chamavam-me de assassino, de doente.
        Eu já não sentia mais nada. Não sentia dor, não sentia raiva. Não sentia desprezo.
        Eu já não sou nada mais. Apenas amor. O resquício do nosso amor fora transformado em ódio, em carnificina. E aqui preso e esperando julgamento, te escrevo essa carta, pra tu lembrar do que tu foi na minha vida.
Com ódio e com amor, J.D.


        Ela terminou de ler a carta. Sentia náuseas.
        Pegou uma caneta da bolsa, e escreveu no verso do papel.
     
        Isso nunca foi amor.

        Endereçou a carta novamente ao remetente, colocou no envelope. Terminou o café. E saiu.

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