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segunda-feira, 30 de abril de 2012

Higienização.

Segundo a idéia da Verônica Hiller, do Girl Sets Fire. Concebida no meio da madrugada, entre um sonho e outro.






Abro os olhos alguns segundos antes do despertador tocar. E começa a canção no rádio relógio.


Eu intrinsecamente não presto.
Tenho um coração feito de madeira.
Estou apenas matando tempo.
Apenas recitando linhas de memória.


O mau sai à noite. Enquanto todos da cidade alta dormem os corvos da cidade baixa saem. Buscando as migalhas e chupando as carcaças dos cidadãos consumidos pela rotina. O profano caminha sob a marquise do seu prédio enquanto você dorme. Os restos de uma sociedade corroída infiltram-se nas vielas, como chorume fétido apodrecendo todas as entranhas da cidade. E eles fedem. Eles vivem de quaisquer restos que são jogados na sarjeta. Eles matam. Roubam.
Prostitutas e cafetões. Drogados e traficantes. Assassinos, vítimas. Bandidos, corruptos.
O mau sai à noite. 


Todo dia eu acordo, faço tudo sempre igual. O despertador toca às seis, e está começando a escurecer. Enquanto a cafeteira tremelica e pipoca com barulhos estranhos eu faço a barba. No "tlin" da torradeira eu já estou pronto, vestido e religiosamente de banho tomado. Pontual, meticuloso. De tanto repetir eu já acostumei a viver a minha rotina pré-hora-do-trabalho sem os óculos. Apenas na inércia.
Quinze mastigadas pra cada mordida. Quinze mordidas por fatia de torrada. Duas torradas. Um gole de café a cada duas mordidas. Quatrocentos e cinquenta, esse é o número. 
Às seis e vinte e sete, no máximo vinte e nove eu já estou pronto para sair. Meia hora de caminhada até o trabalho. Pouco mais de um quilômetro e trezentos metros. 
"Tchau amor." - Eu digo para a pessoa deitada na minha cama.
E vou para o trabalho.
Lá me chamam de Monoturno.
Seis e cinquenta e nove eu cheguei, um minuto adiantado. Bato o cartão. - "tlin tlin" - Me diz a máquina, mas não é a sineta da torradeira. Embora com ambas eu seja pontual.
"E aí Monoturno." - Diz o grandalhão do turno anterior.
"Bom dia, Grandalhão." - As pessoas odeiam os nomes que eu coloco nelas. O problema é que eu nunca consigo lembrar seus nomes de verdade. Então a característica mais evidente será seu nome. E o Novato me pergunta:
"Por que te chamam de Monoturno?"
"Enquanto uns trabalham dez, doze horas, contadas na máquina de ponto, eu sempre trabalho apenas as minhas oito horas, sem um minuto a mais, ou a menos. Apenas um turno."
"E aí, como é que anda a sua vida, senhor Monoturno?"
E sentando-me no meu posto, na guarita frontal da fábrica eu respondo o Novato:
"Por favor, meu turno começa agora e meu trabalho de vigia exige completa atenção. Sem distrações por favor."
"Nossa. . . Às vezes você é tão mecânico. Você não é um robô não?"
Eu não respondo, preciso de atenção.
Está começando a anoitecer. Toda a cidade começa a ser pintada de roxo pelo crepúsculo. A rua das putas fica aqui perto. É nessa hora que elas saem para o trabalho. Algumas trabalham inclusive aqui na frente da fábrica. Esperando apanhar os operários no horário de saída.
Sujas. Profanas. Violadas.
As oito horas passam tranquilamente. Como todos os dias apenas carros entrando e saindo. Desde que eu entrei a arma no meu coldre nunca disparou uma bala sequer. O cacetete nunca encostou em pessoa alguma, também. Nunca precisei deles. Ou melhor, nunca precisei deles em horário de trabalho.
Saio do trabalho às duas e cinquenta e nove. Oito horas contadas.
Hoje, na volta eu passei por sete prostitutas. Duas delas eram homens. Uma eu conhecia, e sabia exatamente o seu fim, mas não hoje. Daqui a duas luas cheias apenas.
Era uma promessa, uma à cada duas luas cheias. A desta semana eu já tenho.
E hoje é o último dia da lua que começa a minguar. Hoje é o último dia da criatura suja presa na minha casa.
Um quilômetro trezentos e pouquinho depois eu chego em casa novamente. Esqueci o rádio relógio ligado. Ao menos hoje ela teve música para ouvir.
"Olá, amor. Cheguei." - Grito para ela, que está deitada na minha cama. Eu sei que ela não saiu de lá. Ela não pode sair de lá.
O bom de viver em uma cidade grande é que a cidade nunca para de madrugada. Qualquer serviço que eu preciso eu tenho à qualquer hora. Eu sou um ser noturno, e mesmo assim encontro tudo o que eu preciso.
"Oi, por favor, janta pra dois. Tempurá, yakissoba e rolinhos-primavera. Nada pra beber." - O mesmo pedido de todas as noites. Dá vinte e um e quarenta. Todo mês seiscentos e sessenta e quatro e quarenta. Dá menos nos meses com menos dias.
"Agora é hora da comida, amor, vem!." - Eu tenho que ser cortês, não gosto de ser mal educado. Antes de desamarrá-la da cama eu visto algumas roupas nela. Uma puta suja, nua, gritando pela minha casa não é bom.
"Se você não parar de gritar eu não tiro a mordaça!" - Essa não quis comer nenhuma vez. Desde que eu a apanhei ela não comeu nem uma garfada que eu quis dar a ela. Cuspia na minha cara, tentava morder meus dedos e gritava.
"Cala a boca! Sua puta imunda! Vê se come! Eu quero você bem alimentada até o final da semana. Você vai me obrigar a usar o funil. É isso que você quer?" - No treinamento para o meu trabalho eu aprendi alguma técnicas. Após algumas modificações, algum alongamento e pontaria certeira é possível utilizar um tubo de traqueostomia para alimentar uma pessoa. Na primeira vez que eu fiz deu terrivelmente errado e os pulmões de uma das garotas que eu havia pego acabou cheio de comida em pasta. Mas hoje, depois de muitas garotas eu já tenho prática.
Esta tentou resistir, gritou, debateu-se. Mas como estava amarrada na cadeira não pode fazer muito. Era até que divertido, excitante, talvez. Ela lá, seminua, vestida em trapos. Tentando resistir à mim. E eu dizia: "Meu bem! Isto é para fazer bem par a você, se você não comer você ficará fraquinha. Eu vou dar uma injeção em você, e quando você acordar você vai se sentir nova em folha, certo?"
Quando ela acordou eu via medo em seus olhos, a respiração ofegante fazia gorgorejos no tubo que saía da sua traqueia.
"Está bem alimentada agora? Então nós vamos brincar!" - Depois de tanto tempo eu aprendi. Pequenos truques que simplificam muito meu trabalho. Coloquei rodas nas cadeiras em que eu as prendo, muito mais fácil de levá-las para lá e para cá dentro de casa. Aprendi a fazer toda a bagunça apenas em um cômodo da casa. O chão do quarto é forrado com plástico, assim o sangue não mancha o chão. Eu enrolo o meu cacetete em panos, assim o sangue não espirra nas paredes. São coisas que nós aprendemos com o ofício.
Esta garota foi a número vinte e sete.
"Agora, meu amor, é hora de brincar." - E como muitas outras vezes, é hora de eu usar meus instrumentos de trabalho.
Normalmente elas resistem apenas a doze ou quinze golpes. Se passaram a semana sem comer no máximo oito. Esta de hoje era forte, no décimo quarto ainda gritava. Olhava-me com ódio e cravava os dentes na bola da mordaça. De tanta força um pedaço de dente lascou e o sangue escorria pela sua boca. Ela só foi desistir no décimo nono. No vigésimo terceiro já havia acabado.
E novamente, como nas outras vinte e seis vezes, o corpo todo foi jogado na caldeira do prédio. Sendo o único morador eu não precisava preocupar-me com o cheiro, com gritos, tampouco com vizinhos. Coisas que nós aprendemos com o ofício.
E assim, lua sim, lua não eu vou expurgando o mau da minha vizinhança. Limpando a rua da imundice. Uma puta de cada vez. E assim, quem sabe, até o final dos meus dias toda a escória esteja transformada em cinzas. Os depravados, vermes, sujos. Na próxima eu quero um homem. Um bandido, um assassino, um assaltante ou um cafetão. Será um a menos a sujar as ruas. 
Eu só quero higiene na minha cidade.
Eu estou limpo.


Abro os olhos alguns segundos antes do despertador tocar. E começa a canção no rádio relógio. Todo dia eu acordo, faço tudo sempre igual. O despertador toca às seis. . . 

Um comentário:

  1. Eu ainda estou em transe com o texto.
    É genial, GENIAL!

    Envolvente, a gente acha que vai se deparar com algo e nasce outra coisa.

    Parabéns, Lucas, tens um novo fã.

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