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sábado, 14 de janeiro de 2012

Detrás da bandana.

Este é o primeiro texto de uma história nova. A história de Simon e Eugene Bouvier. Dos irmãos Ezequiel, Benjamin, e Carmensita. E de Carmem. 


        Os pulmões encheram-se de ar. A respirada profunda trouxe consigo o frio ar da noite. Os pulmões esvaziaram-se em um silvo de ar, lento, calmo e comprido. Os pulmões encheram-se de fumaça. A respirada trouxe consigo o gosto amargo do cigarro. A fumaça saiu pelas narinas, fazendo quase que imperceptivelmente o septo arder. Na segunda tragada o vento estava contra o seu rosto, e a fumaça entrou nos olhos. Ardeu, lacrimejou e embaçou a visão. A fumaça saia acompanhada pelo vapor da respiração.
        Ele jogou o toco de cigarro fora e cobriu o rosto com uma bandana que estivera amarrada no pescoço. O frio consumia toda a extensão de pele livre, ainda que fosse pouca. Apenas os olhos e as mãos, e outrora a boca descoberta agora acolhida sob o calor da bandana. Ele vestia sapatos, uma calça de algodão cinza, um sobretudo de lã cinza com as golas levantas, uma camisa branca e um chapéu. Aquele cara estranho, andando e fumando pela rua de madrugada. Se não fosse pelo sobretudo, ele pareceria um caubói de bandana no rosto e chapéu. Se não fosse pela bandana, ele pareceria um Gângster.
        As luzes dos postes iluminavam a rua recém molhada pela chuva e um caleidoscópio de reflexos formava-se em cada poça. Não passavam carros, não haviam luzes acesas nas casas, não havia ninguém. Apenas o Gângster de bandana e as nuvens de fumaça que demoravam para dissipar-se no meio da neblina que ia surgindo com o passar das horas da madrugada.
        Ele sentia o peso da arma no coldre sob seu peito. As pupilas dilatadas estavam sensíveis sob a luz que vinha dos postes. Por mais que estivesse frio, ele suava. Seu coração palpitava e as mãos tremiam. Ele estava eufórico. Ele tinha medo. Ele durante muito tempo esperou por este momento.
        Agora ele era grande. Ele tinha conquistado o poder e iria usá-lo como bem entendesse. Ele era feito de aço. E era livre como o vento. Tinha a arma em suas mãos e o destino de Carmem balançando debilmente sob o fio de uma navalha.
        - Cheguei.
        Ele parou em frente à uma boate. A luz vermelha lhe ofuscou os olhos. Checou os bolsos internos do sobretudo e apanhou uma pequena lata de balas de menta, abriu-a e despejou uma pequena quantia do pó branco que ela continha nas costas de uma das mãos. Com uma forte respirada ele inalou o pó. Como se uma onda elétrica tivesse percorrido seu corpo a tremedeira aumentou.
        Puxou a arma do coldre, engatilhou-a, chegou o tambor e colocou o braço para dentro do casaco. Queria entrar lá já com a arma na mão, mas não queria que ninguém visse. Parou diante da porta, respirou fundo e entrou.
        O lugar era um muquifo quente e mal iluminado. As moças que lá trabalhavam ou já haviam saído, ou estavam ocupadas. Ele sentia cheiro de perfumes baratos, misturados ao cheiro de cigarros. Mas havia um cheiro que lhe incomodava. O cheiro de gente. O cheiro azedo do suor, cheiro impregnado nos sofás, cheiro de pele humana suja, suada. O cheiro dos banheiros era ainda mais nojento, podia ser sentido de longe. O cheiro de urina espalhada pelo chão.
          Ao passar pelo barman ele lhe cumprimentou, Simon ia direto subindo as escadas, ia passar sem fala com ninguém, mas foi interrompido.
        - E aí Simon, qual a de hoje?
        - Quero falar com a Carmem.
        - Sobe lá. Cê quer alguma menina? Algo em especial? Hoje tá meio fraco, mas conversa com ela lá.
        Sem esperar o barman terminar ele subiu as escadas. Passou por um longo corredor de quartos, o cheiro dos quartos era mais insuportável que o dos banheiros. Tinha cheiro de sexo. Não era apenas o cheiro de suor, cheiro de gente. Era misturado com cheiro de sêmen, e com o cheiro das mulheres. Tudoescondido sob um perfume barato. O chão era de um assoalho de madeira mal encerado, haviam buracos e riscos, aquilo não era encerado faziam anos. Quem preocuparia-se em cuidar daquele lugar? Goteiras, paredes descascadas, mofo e o maldito cheiro de sexo.
        Ao final do corredor havia uma porta fechada, ele sabia que era agora. Caminhou calmamente até ela. Ficou alguns segundos parado. Respirou fundo e chutou. O trinco da porta quebrou-se facilmente. E com a arma em punho ele mirou diretamente na cabeça de Carmem. Ela gritava, desesperada, chamava o nome de  Simon e encolhia-se na cadeira. Em frente a ela havia uma mesa onde ela contava dinheiro, um cinzeiro, e alguns copos cheios de bebida. Ele viu a lágrima nos olhos dela. As gotas borravam a maquiagem colorida que escorria pelas rugas do rosto. No pulo do susto o cabelo vermelho pintado fora despenteado. Ela estava encolhida na poltrona, choramingando, paralisada de medo. 
        Ela tremia.
        - S-s-s-simon? O que é isso?
        - Querida Carmem, vim lhe fazer uma visita.
        - Abaixa essa arma, meu filho.
        - Eu tenho um assunto para tratar com você. 
        - O-o q-q-que?
        - Lembra do Eugene Bouvier?
        Ela paralisou-se. Não tremia mais. Não piscava. Não gaguejava. Apenas olhava Simon atônita. Não sabia se o mais assustador era ele conhecer Eugene, ou ele estar ali com uma arma apontada para ela.
        - Você conhece ele?
        - Conheço.
        Ele deu um passo. Apanhou o cigarro aceso no cinzeiro e colocou-o na boca. Ainda mantinha a arma apontada para Carmem. Seu braço não iria se cansar do peso da arma tão cedo. Deu uma tragada e cuspiu-o no chão. Aproximou-se mais ainda dela, e encostou a arma no centro da testa de Carmem. Ela desmanchou-se em lágrimas. Sentia o aço frio na sua pele e teve vontade de urinar. O medo a fez perder o controle da bexiga e ela sentiu o líquido quente descendo por suas pernas e inundando a poltrona. Pigando no chão e molhando seus pés. E enquanto isso Simon apenas parado, impávido, com a arma na cabeça dela.
        - Eu vi cobrar uma coisa. 
        - O que?
        Com um golpe ele virou a mesa que estava entre ele e Carmem. As notas voaram feito uma supernova de papel. As garrafas e copos caíram e quebraram-se, os cacos molhados agora faziam todo o lugar cheirar à álcool. As cinzas diluíram-se no Whisky e fizeram uma papa esbranquiçada no chão. Ele aproximou-se da face dela. Tão perto que ela podia sentir a respiração quente em seu próprio rosto. 
        - Os anos que você roubou dele.
        - Eu não roubei ano algum.
        - Você só fez um filho dele, e depois abandonou-o. Deixou ele e seu filho só para viver nessa vida de luxúria. Durante todos esses anos ele criou seu filho sozinho, te procurando. E você não sabe o quanto eu te procurei, o quanto eu te esperei. E agora eu vim cobrar todos esses anos.
        - Diga a Eugene que eu sinto muito. Eu não queria fazer isso, mas eu precisei.
        Ela não sentiu nada. O tiro na cabeça foi quase indolor. E em questão de instantes infinitesimais ela perdeu a consciência. A bala saiu pelo outro lado da cabeça abrindo um buraco e levando sangue, miolos e cabelos. A parede branca atrás da poltrona ficou salpicada de sangue. As gotas escorriam e os pedaços caíam ao chão. Ela ficou caída com a cabeça para trás na poltrona, com os olhos e a boca abertos. Parecia que podia ver sua própria cabeça destruída, os olhos vidrados de espanto. Ou seria dor?
        Simon guardou a arma no coldre e saiu. 
        - Pelo meu pai, vagabunda.
        Ao descer as escadas foi novamente cumprimentado pelo barman. 
        - Ô, já tá indo?
        - Sim, já resolvi o que tinha que resolver.
        - Gostei da bandana no pescoço, dá um ar de requinte, seu Simon.
        - Obrigado, até mais Carlos. 


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