Texto escrito para a Corrente Literária, "O que dura pouco para você?".
Dizem que quando você está para morrer você vê a sua vida passando diante dos seus olhos. O problema é que quando eu puxei o gatilho tudo passou rápido de mais.
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Nasceu. Dois quilos e pouco. Filho de pai músico, mãe puta. Depois que nasceu o filho a mãe sumiu e nunca mais apareceu. Ficou na mão do pai, coitado. O pai queria que fosse músico também. O filho coitado, nunca tocou uma nota no piano sequer. O pai queria ter casado, não sabia que a mãe do menino era puta. A mãe era puta porque sabia que não prestava pra nada mais, apenas se emprestava para os outros. O pai dizia que ia dar casa, comida e dinheiro toda semana. Ela dizia que já tinha o que precisava. Não quis abortar o filho, já era velha e podia morrer, tinha medo. O pai enfim ficou com a criança. Cresceu forte e bonito o piá, nem parecia que passava fome todo dia, salário de músico não dá pra muita coisa, dizia o pai. Moravam a duas quadras da XV, não que morassem bem, mas a casa era herdada da mãe do pai, e era a única coisa que tinham. Como não tinha quintal pra brincar, tampouco vizinhos da mesma idade, o piá brincava na quinze mesmo. Corria da Osório até a Santos Andrade de pés descalços. E pouco a pouco ele começou a ter a cor da cidade. Os pézinhos sujos conheciam os engraxates da Boca Maldita pelo nome, eram amigos de longa data da mulher-da-cobra, e embora não soubessem o que era Art Noveau eles conheciam bem os portões de ferro dos prédios antigos. Assim, sempre voltando antes das seis, ele voltava da escola, almoçava e ia pra rua. Conhecido dos Lojistas os cumprimentava de vista. Amigo dos mendigos, de tanto jogar bola em frente ao Stuart. Se tinha medo de ficar sozinho? Não. Ele nunca esteve sozinho. Aquela rua era cheia de gente, que embora não soubessem quem ele era, o deixavam seguro. Quantas vezes o guri na sua ignorância não deve ter visto o Trevisan nos bancos da XV e não o reconheceu. Mas infância que é boa, dura pouco e se perde muito rápido. Aos poucos ele foi perdendo o medo da noite, ficando depois das seis. Um dia viu a pedra da Gilda ser roubada, e junto com a pedra foi-se a sua inocência. Ele viu que aquela rua não era o castelo de fantasias dele. Abrindo os olhos ele via a sujeira nos cantos. Volta e meia via os ratos correndo por lá. Mas o pior não eram os ratos, eram as pessoas que viviam com os ratos. Ele não era o único morador daquela rua. Crianças, assim como ele que dormiam debaixo das marquises. Uma vez, cedinho saindo pra escola, ele viu um Rabecão recolhendo um mendigo que havia morrido de frio. Quem diria, que as belas pedras do petit-pavé, que ele já estava tão acostumado a pisar de pés descalços, também podiam matar de frio os desafortunados. O tempo passou. A inocência foi embora. E ele meteu-se com gente que não devia. Crescido à beira da escória, estagnado no meio dos passantes de um lugar que nunca para, a única salvação que ele tinha era meter-se com gente que não devia. Mas a salvação não era salvação do seu futuro, ele já não tinha nenhum mesmo, vindo de onde veio, criado onde foi, não podia-se esperar muito dele. O que ele salvava era o seu tempo. Salvava seus olhos da sujeira que não queria ver. Metendo-se em mais sujeiras ele deixou o passado para trás. Agora viva em outras sarjetas. Acostumou-se com a sujeira pois já fazia parte dela.
Assim, sua infância passou.
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Tem coisas que nós deixamos para trás e tentamos esquecê-las. Talvez porque sabemos que nunca mais viveremos outra vez. Talvez por ressentimento por terem ficado para trás. O que fica apenas é o saudosismo dos anos de piá, quando viver era fácil. O que passou, passou. E se pudesse viver de novo viveria exatamente como vivi. O tempo que nós temos para pensar é tão curto quanto o tempo que temos para viver. E o tempo que eu tive pra pensar no que eu vivi foi menor que o tempo em que a bala ficou dentro do tambor da arma. E o que eu pensei, naquele segundo depois de apertar o gatilho, fora no ano em que eu vi os ipês da Osório florescerem. E assim, minha vida se foi, feito os anos, feito as memórias, feito o tempo e feito as flores pisadas na calçada depois da primavera.
Me emocionei. Que lindo. Forte e triste, mas tem a história inteira de alguém ali. Os infortúnios e impressões.
ResponderExcluirParabéns, Lucas, LINDO texto.
Fazia tanto tempo que eu não lia algo TÃO FILHADAPUTAMENTE BOM ASSIM.
ResponderExcluirAgora entendo como se transforma palavras em realidade, ou melhor, realidade em palavras. Excelente!
ResponderExcluirEspetacular a viagem no tempo que fazemos ao ler o texto. Vibrei em cada "Clique" =]
ResponderExcluirUau! Realmente vi tudo...
ResponderExcluirParabéns.