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quarta-feira, 25 de julho de 2012

Moto Perpétuo.

"O peão matou o rei. E o fez apenas porque era da sua natureza.
As abelhas fizeram o mel. E o fizeram apenas porque era da sua natureza.
As aranhas fizeram as teias, os pássaros os ninhos. E tudo apenas por ser da sua natureza.
E Deus criou e amou os Homens apenas porque era da sua natureza.
E o Homem repudiou Deus apenas por ser da sua natureza."

Amém. Disse a menina.
Amém. Disse o padre.
Amém. Disseram todos.
Ela não era mais uma menina. E as coisas que você escrevera no seu caderno eram um sacrilégio sob o teto da igreja. As coisas que ela fizera não eram sagradas em templo algum.
Amém. Disseram todos. Menos você.
E todos levantaram-se. Mas você já estava de pé.
E todos despediram-se. Mas você já havia saído.
Você esperava a menina. Que já era mulher.
Você esperava amor.
Se ela pudesse sentir dor sentiria onde ela havia se picado.
Mas ela sentia apena o pecado.
Você a esperava.
Ela veio, através da nave da igreja ela caminhava.
E você rígido feito os gárgulas de mármore a esperava.


- Não sabia que você vinha a igreja. 
- Não sabia que podia fumar na igreja.
- Eu não estou dentro. Estava te esperando aqui fora.
- Me esperando por que?
- Tu leu minha carta?
- Eu esqueci minha seringa na tua casa.
- Tu veio chapada pra igreja?
- Eu gosto da arquitetura daqui, sabia?
- Tira esses óculos escuros. Eu quero ver seus olhos.
- Você tem mais um cigarro pra me arrumar?
- Vai pedir cigarro antes de mim de novo?
- Eu nunca pedi você.
- Toma.
- Tem fogo?
- Tenho brasa.
- Obrigada.
- Eu queria que você me entendesse, ao menos.
- Eu queria saber se Deus existe.
- Eu existo.
- Você não acha que já não está faz muito tempo batendo na mesma tecla?
- Tem uma carta lá em casa te esperando. Tem uma cama. Tem o que você quiser.
- Calma. Essa foi só a primeira. Ainda tem mais oito missas.
- Tá fazendo uma novena, eu achei que você não acreditasse em Deus.
- Tô pagando uma promessa.
- E o que você pediu?
- Amor.

domingo, 22 de julho de 2012

Para-sol.

Era tudo em escalas de cinza. E você vivia essa sua vidinha em preto-e-branco. Cama-cozinha e um caderno em branco. Com seus olhos sem cor você via o mundo acontecendo ao seu lado e você deixava tudo perder o brilho.
A água corria sem irradiar luz. A música tocava sem beleza. E a poesia não emocionava mais.
Que belo poeta você se tornou, hein?
Para escrever as coisas belas você precisa viver coisas belas. E o que existe de belo neste azul-tornando-se-cinza das paredes do seu quarto? Os tons de sépia dos gibis não são o que você pode chamar de bonito, certo? Você precisa ver o colorido das coisas. E o seu teto é de madeira, deixando tudo mais escuro por dentro. Há um ipê na frente da sua janela, e seu quarto é virado para o sul.
Não tem luz, não tem cor, não há brilho algum dentro de você.
Que belo poeta você é.
Então o que alinha meu coração ao teu?
As poesias, talvez.

A água corre nas suas mãos mas seu brilho é artificial. Todos os seus dias sob lampadas fluorescentes lhe fizeram ter um brilho estranho na pele. Seu olhos agora estão acostumados à luz artificial. Você já se esqueceu da cor dos seus braços sob o sol. Agora você é apenas iluminado por telas e lâmpadas ecologicamente corretas. Mas de que adianta a luz ecologicamente correta se luz de verdade você não tem?
Criados em salas de aula, escritórios, em frente a televisões e computadores, nós nos esquecemos o que é a luz de verdade. Criados em ambientes anti-sépticos nós nos esquecemos do que é sujar os pés na terra.
Foi isso que te fez perder a poesia, não foi?

Eu almoço angústia e vejo os sorrisos na TV. Vejo os utensílios descartáveis de hotel. Vejo as camas arrumadas e os lençóis trocados todos os dias. Vejo pessoas sorrindo para mim sem ao menos saber quem eu sou. Me desejam um servil bom jantar, mas não estão interessados na minha satisfação. Ah, a doce e servil simpatia. Você pode chamar isso de casa?

Mas ainda faltam as cores e o brilho da água.
Falta o vermelho dos lábios e a risada de menina.
O enrolado dos cabelos, as arestas do sorriso.
Os olhos de fundo de poço.
E você chama tudo isso de saudade.

E você abaixa o para-sol do carro para tirar o sol da sua visão. E no espelho você os olhos fundos. Você vê o castanho. Olha cada centímetro da sua pele. Os lábios e a barba de uma semana. Você vê tantas coisas em si mesmo. Mas teima em ver o mais importante. Você deixou de ver o sol nos seus olhos. Onde foi parar todo o brilho? Você mesmo colocou esta sombra diante de si.
A última coisa que você vê no espelho do para-sol é o seu sorriso.
Mas o que você precisava ver não estava no espelho. E você vê os vinhedos, vê as pradarias e grandes montanhas no horizonte. Você vê a estrada de terra batida e a fina poeria sendo banhada pela luz do sol. E enquanto o sol se põe você sente o calor no seu rosto. A sombra se foi, e sob a luz o castanho dos olhos vira verde.

E o mais importante, ao voltar, você vê o vermelho, vê o brilho, vê o enrolado, e os olhos escuros.
Você vê agora as cores da vida.
Você vê a poesia, o brilho.
vê.

sábado, 21 de julho de 2012

que não é carta mas sempre volta

Texto escrito pela Verônica Hiller, do Girl Sets Fire. Sem maiúscula alguma ela escreveu uma história pra continuar a minha.






você pediu o cigarro com medo de pedir amor. 

ah, e você queria amor. 
você sempre quis.
só que ao contrário, sempre recebeu pontapés. empurrões. olhos roxos. arranhões. e ainda acham que podem te julgar - da tua dor tão forte e intrínseca, que vender o corpo já não fica tão sofrido assim. o que te dói mais, sempre ficou lá dentro. então, você nunca teve muito tempo pra reprovações alheias: você só chegou nessa sarjeta por causa do amor – 

você amou. 
amou e foi feliz, amou e se rasgou, amou e abriu o peito demais. 
amou e se afogou. 
você amou e se perdeu. 
você amou e foi suprir tua abstinência de carinho numa seringa cheia de morfina. 
você amou e só perdeu tudo. 

você amou e agora se prostitui pra pagar tua droga porque um dia só sentiu saudade demais. 

e depois de tudo, depois de se enfiar na lama até o fundo, depois de passar pela mão de meio-mundo, ele surge recusando teu boquete e querendo teu coração. falando do amor por você como se pudesse, como se coubesse. 

o problema é que ele não sabe. 
o problema é que ele te deu os cigarros, te olhou e enxergou teus olhos e a tua dor e só achou bonito. 
o problema é que ele já te invadiu o peito, e não somente entre as pernas. 

ah, e você se tranca. você se engole. você tem medo: você deixa a tua letargia esconder teu amor. 

e ele acredita.
ele não sabe. 
ele é poeta. 
ele tem as mãos delicadas, os olhos sonhadores e a voz macia: ele não sabe nem de metade. 

por isso você demonstra querer só a morfina que ele te paga – teu corpo é barato, mas teu carinho é caro. 
ele te chama de vagabunda e sofre por você. ele te odeia cada vez mais porque te ama. então você sofre junto. você se rasga de vontade dele, mas tem medo. então, você se droga: agora se entorpece pra fugir dele e do amor.

ele só tem que entender que te amar é errado. é sujo. é pesado, delicado. ele só precisa te conhecer até as entranhas e enxergar todas as vísceras pra concluir que quer ir embora. 

porque ele quer voltar pra casa, esquecer da tua cara, só escrever as tais das cartas - depois de se satisfazerem, eles te deixam o dinheiro e sempre vão embora

e ele tem que ir. você precisa cuidar da sua vida, se vender na esquina, se viciar só na morfina. ele só precisa ir embora e fazer tudo isso acabar. levar o amor junto dele, pros teus versos, guardar o lirismo só pra ele. 

então você faz de tudo pra que isso acabe. você quer que ele te odeie e saia da sua vida. porque mesmo que ele fique, quem vai cuidar da tua dor depois ? 

você é só a puta desgraçada que encantou a vida dele sem emoção com os teus espinhos vulgares. e uma hora, ele cansa, vai embora, desaparece. e você vai amá-lo até depois que ele virar as costas. mas os espinhos, estes vão permanecer selvagens. 

até porque, você o ama mas não acredita mais em você mesma. já sabe que não vale a pena. sabe que é só amargo. já conhece toda a cena. 

e no fim, só te resta teu corpo vendido e machucado. só te sobra agradecer à morfina, por te tirar do mundo e te esquentar todo dia. 

e desprezar todo o resto.
porque desse mundo, você só recebeu amor estragado.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

As cartas de amor sempre voltam.

Continuação de Jigsaw Falling Into Place.


E você acorda. E ela ainda dorme. A TV muda tamborila nas paredes com um arco-íris de tons de marrom e cinza. Toda a sua vida é mais ou menos assim, muda em tons de marrom e cinza.
Não, ela não dorme .Ela está chapada na sua cama. E você tem o gosto amargo da ressaca na sua boca.
Você escreve uma história sobre (des)amor.
Você nunca precisou pensar, não fez poesia nem criou histórias. Você só vomitou tudo aquilo que sentia. E aquilo saiu com gosto de fumaça.

"Me dá um cigarro." - Diz ela acordando.
Ela tem os lábios rachados e o cabelo bagunçado. As olheiras a fazem parecer um panda. E seu rosto está coberto por uma cera seca e amarelada que é a sua pele, a carne prende frouxamente nos ossos da face.

"I wanted to destroy everything beatiful i'd never have." - Diz o filme na TV.
A primeira coisa que você pensou quando acordou foi nela.
A primeira coisa que ela pede é um cigarro, e não você.
Você bebeu de mais ontem, não foi? E você tenta se lembrar da história escrevendo-a em um papel.

Os escritores amam de mais. E eu só queria amor. 
As putas amam? E você só queria algo para se drogar.
Eu te dei,
você me deu amor?

Sua cabeça dói. É a ressaca, amigo.

"I wanted the world to hit the bottom." - Diz o filme na TV.
Ela tem sujeira nos cabelos. Ela tem remelas pretas de maquiagem nos olhos. Ela tem a pele branca cheia de cicatrizes pelo corpo.
Ela só te pede um cigarro.
Você só pede companhia.

Das coisas que você me pediu eu cobrei,
e recebi apenas valores de puta pobre.
E de novo você me pediu, 
eu também te pedi.
Eu te dei algo,
você me deu algo?


Ela passou a noite na sua cama. Mas não teve amor. O único amor que havia era o seu. E durante o tempo que ela gemia, virava os olhos e tremia você cuidava dela. Beijava as feridas, secava o suor, lambia as lágrimas.
"Que merda essa foi que você me deu ontem?" - Ela tem hálito de cigarros e embora não tenha fumado faz tempo o cheiro já impregnou-se nos dentes.
O cheiro do cigarro já impregnou nas suas mãos.
"Cadê a porra dos meus cigarros? Só assim pra começar meu dia bem." - Você podia ter tirado as roupas dela enquanto ela dormia. Ela fede suor. Você vê os mamilos através da camiseta.
É tudo tão erótico.
"I wanted to breathe smoke." - Diz o filme na TV.
Você amava a letargia dela.

E no meio da noite eu te disse. "Eu quero ter um filho seu.".
Entre lábios tremendo você me disse. "Eu quero ter um aborto seu."

Foi por isso que você saiu. Ela te deixou, e ficou apenas com o vício, te deixando na abstinência.
Abstinência de amor.

"O que você está escrevendo? São essas poesias de novo? Eu odeio poesia. Por que os caras simplesmente não dizem o que tem para dizer sem ficar fazendo rodeios?" - Ela desperta com a ferida no braço sangrado, e começa a tirar a casca dos machucados das agulhas. - "Arte é uma merda."

"I wanted to burn the Louvre." - Diz o filme na TV.
Tudo em tons de cinza e marrom.

Você deixa a carta no travesseiro.
Ela volta a dormir.
Você sai. E o tempo passa.

Eu só queria que você me amasse além dos cigarros e do vício.
Cada um tem o vício que lhe cabe.
Eu quero amor.


Ela acorda.
E deixa a seringa no travesseiro ao lado da carta não lida.
E sai. E o tempo passa.

As cartas de amor sempre voltam.

sábado, 7 de julho de 2012

Jigsaw falling into place.

Texto baseado na música do Radiohead.
Continuaçao de Le sacre du printemps.

"Mais uma, por favor." - Você diz.
E você tinha dito que iria parar de fumar.
Mas de beber não. E você sorri feito Cheshire.
Você se esquece do seu dia ruim.

A bandinha toca um samba sincopado ali ao lado. E você espera que a canção acabe. Você espera que a sua canção acabe. Você espera que a canção dela acabe.
Você apenas espera. Você pacientemente espera que tudo acabe. Mas sabe que não vai passar.
As batidas reverberam no piso de cerâmica, voltam para seus ouvido e vão parar dentro da sua cabeça. Mas não, não era o samba que te fazia sentir isso. Não, não era o álcool que te fazia sentir isso.
Era ela que te fazia sentir.
Desconforto.

E o que você sentia eram borboletas nos pulmões. Já havia passado das do estômago faz muito tempo. Agora era ruim. Claustrofóbico. E o que você sentia era o seu peito comprimindo as suas costelas para fora. O que você sentia era a sua alma gritando de dentro da sua caixa torácica. Pedindo misericórdia. Pedindo que você parasse de amar. Que parasse de sofrer. Você, pedindo a si mesmo misericórdia. Você está se destruindo.

Ela era só uma puta barata.
Mas alguma coisa ela devia querer de você.

As câmeras capturam um cara bêbado em uma mesa. Arrotando palavras amargas pra quem quiser ouvir. Sibilando as lágrimas. E cantando na batida sincopada um lamento. Você sente as luzes nas suas costas. Você ouve as gurias dançando. Mas você está muito bêbado para ir atrás dela.

E você acende um cigarro.

E tudo aquilo consome você. As luzes ofuscam o seu olhar. As paredes tornam-se difusas. Os rostos agora são apenas um borrão de um sorriso. E lentamente você vai caindo naquela espiral de entorpecimento. Vai se sentindo enjoado. E o gosto ácido vem a sua boca. Você precisa ir ao banheiro. E rápido.

Onde foi que você chegou? Vomitando no banheiro de um botequim qualquer por causa de uma vagabunda que nem lembra mais de você.
Pare de se humilhar.

Mas tudo isso começou muito antes do samba. Muito antes dela ir embora e antes dela fugir de você. Muito antes da primeira cerveja. Muito antes do primeiro cigarro. E tudo o que você disse a ela machucou. - "Palavras são feito uma espingarda de cano curto". - Não era assim que a música preferida dela cantava?

. . .ela te disse que queria algo mais forte pra se entorpecer, que não queria amor. Você disse pra ela que queria conversar. Ela disse pra você que agora não te devia mais nada. Você perguntou para ela o que ela queria. . .

Ela não queria amor. Ela era só uma puta viciada.
Então você deu a ela o que ela queria. E agora ela estava completamente chapada na sua cama. Com os olhos vidrados e sem olhar para lugar algum. Mas de certa forma você amava aquela letargia. Ela ali completamente vulnerável.
Ela fazia você se sentir superior. Ela ia precisar de você enquanto você desse o que ela quisesse.

Ela só queria algo pra se drogar. Você queria amor.
Cada um com o vício que lhe cabe.
Foi aí que começou.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Le sacre du printemps

Continuação de Fel.


Quais segredos você esconde?
"Você tem até o cigarro terminar" - Ela disse. Acendeu um cigarro e colocou-o no cinzeiro ao lado da cama.
Mas ela te devia, não?
Mensurando o tempo em cigarros.

E quanto tempo você perdeu com ela? Você achava que era bom cuspir o amargo do desejo
e assoprar a fumaça de medo do seu peito.
Afinal ela era só uma puta barata, não?
Barata.

E enquanto baratas correm pelo chão acarpetado do motel ela te chupa.
E o cigarro queima. Um cigarro queimando sem ninguém fumar dura no máximo quinze minutos.
Mas você deu uma carteira inteira para ela. Não é por isso que ela está aqui?
E quanto tempo você comprou dela então?

Você sabe apenas do tempo que os cigarros te tomaram por causa dela.
Um cigarro queimando enquanto alguém fuma dura no máximo cinco minutos. É mais ou menos essa a história.
Você fumou avidamente todo o tempo que tinha com ela.
E engasgando-se com a fumaça você disse: "Para, não é isso que eu quero."


Mas você quer rasgar seu peito
esfregar as vísceras na cara dela
dizer o que tem feito
e gritar com esta cadela.


Precipitado.
Medroso.
Fraco.
E vil.

Você compraria uma guria por apenas uma carteira de cigarros?
Mas foi ela quem se vendeu.
Vil.
O que ela esconde você?

Afinal, ela era só uma piada, não?
"Como assim para?" - Ela disse.
Você sabe apenas do tempo que ela te tomou por causa dos cigarros.
"Eu quero conversar." - Você é medroso.

Quatro minutos se passaram.
Ela de quatro na sua frente
no quarto do hotel.
Durante quatro segundos ela te olhou.

Um café oleoso
um cigarro amassado
amor desgostoso
e teu peito descamisado

Visceral.
"Eu vou embora."
E você chora.
"Não estou aqui pra conversar."

Você implora.
"O que é que quer?"
"Eu quero me entorpecer."
Cigarros são muito pouco.

E você compra o tempo dela,
não com cigarros:
"Eu quero algo mais forte,
eu não quero amor."